Arte e Arquitetura
Dois modos de ver a vida no campo
Seis horas da tarde. A faina diária está terminada. A nobre tranqüilidade da atmosfera envolve a vastidão dos campos, convidando para o repouso e o recolhimento. Um crepúsculo cor de ouro transfigura a natureza, fazendo brilhar em todas as coisas um reflexo longínquo e suave da inexprimível majestade de Deus.
Ouve-se o tilintar do Ângelus, amortecido pela distância. É a voz cristalina e material da Igreja, que convida para a oração. Rezam os camponeses. São dois jovens cujo físico manifesta a um tempo saúde e hábito já antigo de trabalho manual. Seus trajes são rústicos. Mas em todo o seu ser transparece a pureza, a elevação, a natural delicadeza de almas profundamente cristãs.
Sua condição social modesta é como que transfigurada e iluminada por sua piedade, que incute respeito e simpatia. Em suas almas refulgem os raios dourados do sol, mas de um sol muito mais alto por todos os títulos: a graça de Deus.
Verdadeiramente, sua beleza de alma é o centro do quadro, o ponto mais alto da emoção estética. É linda a natureza, mas ela não serve senão de ambiente paro a manifestação da beleza dessas almas reunidas pelo Filho de Deus.
Nada nestes camponeses indica desassossego ou mal-estar. Eles são inteiramente conformes a seu meio, a sua profissão, a sua classe. Que outra dignidade, que outra ventura poderia desejar este casal?
Jean-François Millet (1857-1859) reuniu admiravelmente em sua tela (L'Angélus - Musée d'Orsay - Paris) os elementos necessários para que se compreenda a dignidade do trabalho manual na atmosfera plácida e feliz da verdadeira virtude cristã.
Nem todos os momentos da vida do campo são assim. Millet apanhou, no que chamaríamos um instantâneo feliz, um momento culminante de beleza material e moral. Mas seu quadro tem o mérito de ensinar os homens a ver, dispersos na rotina da existência rural quotidiana, os lampejos genuínos e freqüentes desta fisionomia cristã das almas e das coisas num ambiente verdadeiramente vivificado pela Santa Igreja.
A atitude de espírito de Millet, que ele comunica a quem contempla sua obra prima, está toda voltada para Deus, e para os reflexos de beleza espiritual e material que Ele projeta na Criação.
Numa crítica psicológica do quadro, para ser exato, deveria deplorar apenas algum excesso de sentimentalismo.
Neste quadro, não foi o espírito que dominou a matéria e a enobreceu; foi a matéria que penetrou o espírito e o degradou. Nos corpos, o trabalho material imprimiu uma brutalidade por assim dizer facinorosa. As fisionomias exalam um estado de espírito que lembra o botequim e o campo de concentração.
Se os personagens do segundo plano não parecessem de tal maneira endurecidos, se fossem capazes de chorar, suas lágrimas seriam de fel; se fossem capazes de gemer, seus gemidos seriam como o ranger de engrenagens. A tristeza, a maldade, a cacofonia das cores, das formas e das almas se exala pela voz do personagem do primeiro plano. Não se sabe bem o que exclama, se uma ameaço ou uma blasfêmia.
Yves Alix reuniu e exagerou e deformou até o delírio os aspectos por ande o trabalho é uma expiação e um sofrimento, e a terra um exílio; exprimiu com uma fidelidade meticulosa - e como que entusiasmada! - o que na alma humana há de mais atroz e mais baixo, para apresentar o conjunto como aspecto real e normal da vida quotidiana, espiritual e profissional do trabalhador.
E por isto, enquanto da obra prima de Millet se evola uma prece, do pesadelo de Yves Alix se desprende um bafo de revolução.
Se Deus permitisse aos anjos embelezar a terra e a vida, eles o fariam no sentido de tornar mais freqüentes, mais duráveis, mais belos os aspectos que Millet procurou observar e reunir. Se Ele permitisse aos demônios desfigurar os homens e a criação, estes formariam, na alma e no corpo, e nos aspectos das coisas, personagens e ambientes como os do quadro de Yves Alix.
Catolicismo n. 9, Setembro de 1951
Postado em 23 de abril de 2019
Postado em 23 de abril de 2019
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