Consideremos um lugar onde o homem nunca esteve. Tomemos Fernando de Noronha, por exemplo, uma ilha distante da costa brasileira. Vamos imaginar que ela nunca tivesse sido habitada pelo homem. É uma ilha relativamente pequena. De vez em quando um navio pararia ali por alguns dias para pegar água e caçar alguns animais, mas nenhum homem estaria realmente morando lá.
O homem acha a síntese do alto mar e a terra firme muito agradáveis |
Uma ilha assim tem um tom particularmente agradável e harmônico, que é uma espécie de síntese entre o alto mar e a terra firme. Um visitante se sentiria como se estivesse vivendo isolado no alto mar. Toda a atmosfera seria a do alto mar, mas com a firmeza da terra. Isso pode ser muito agradável.
Mas se muitas pessoas ficassem naquela ilha por algum tempo, algo desse prazer diminuiria. Suponhamos que nosso visitante chegasse depois que alguns navios tivessem estado lá por duas ou três semanas. Ele sentiria um prazer em entrar em contacto com a natureza em seu estado puro, o deleite de sentir uma certa ordem que Deus colocou na natureza através da qual o homem pode admirar Sua sabedoria e bondade.
Essa situação agradável refletiria o privilégio de conhecer um ambiente como saiu das mãos de Deus. Esta seria, propriamente falando, a ordem natural em seu melhor aspecto.
Agora, se um grupo de pescadores fundasse uma aldeia naquela ilha, algo seria prejudicado. Não falo da atmosfera marítima, do panorama ou do ar fresco, que continuaria exatamente o mesmo. Mas a ilha teria perdido algo.
Se todos concordarmos com essa observação, poderíamos ir além e dizer que a presença do homem quebra algo da presença de Deus na natureza. Essa presença de Deus diminuiria na medida em que a presença humana na ilha aumentasse.
O homem é um rei quebrado da natureza
Isto parece ser uma contradição porque, como o homem é o rei da natureza, dir-se-ia que a sua presença melhora a natureza. Geralmente, o homem torna a natureza mais agradável e interessante.
Digamos que o homem que possui a ilha transformasse parte da floresta virgem em um parque e construísse uma casa atraente. Do outro lado da ilha, ele teria construído uma pequena cabana para que pudesse ir descansar lá às vezes e ter uma mudança de ar e de vista.
Com isso, ele teria o prazer da variedade. Digamos que ele também tivesse uma plantação de banana, de modo que a ilha se beneficiaria do fato de ter um parque agradável e uma plantação útil. Dir-se-ia, assim, que Fernando de Noronha se teria beneficiado por ser habitada por seu rei, o homem.
É tão simples assim? Precisamos distinguir aqui várias coisas.
Podemos entender que o homem, usando sua inteligência e a capacidade dada por Deus de transformar o ambiente, pode melhorar algumas partes – ou mesmo o conjunto – da ilha. Ela poderia muito bem se tornar mais bonita, mais agradável, etc.
Depois do pecado original, é difícil para o homem tocar a natureza sem interromper o plano intocado de Deus |
Além disso, também podemos admitir que a presença de homens acrescenta um certo charme à ilha. Por exemplo, vamos supor que no parque ele fizesse um caminho bastante civilizado que conduzisse até umas rochas altas de onde se pudesse olhar e ver todo o horizonte. Naquele local ele teria plantado lindas árvores de sombra e teria colocado bancos confortáveis para que uma pessoa pudesse sentar-se ali por um longo tempo para admirar o panorama.
Homens com bom gosto e boa formação, como esse que descrevemos, poderiam muito bem trazer mais graça, encanto e beleza àquela ilha hipotética. Então, concordamos que algo positivo pudesse ser adicionado ao estado original.
No entanto, desde que o homem herdou o pecado original, ele não é o rei perfeito que ele deveria ser da natureza. Ele é um rei quebrado, assim como uma xícara quebrada cujas partes nós colamos e ainda usamos para tomar chá. Ela foi reparada, mas nunca mais será o que era antes de ser quebrada. Assim também é o reinado do homem sobre a natureza.
Porque ele é concebido no pecado original, ele às vezes exagera, tirando da natureza mais do que deveria. Outras vezes ele é desleixado ou preguiçoso e não tira proveito das coisas que deveria. Ainda outras vezes, através do mau gosto, ele estraga o encanto do conjunto – teria sido melhor que ele não tivesse tocado certas coisas aqui e ali.
Portanto, devemos admitir que, por um lado, a presença do homem poderia trazer certa melhoria para a ilha. Por outro lado, em muitos aspectos, ele a teria prejudicado. Quando o homem age sobre a natureza, os aspectos desordenados normalmente acompanham os aspectos embelezadores e civilizadores de maneira que eles não podem ser desassociados. Essa ação ao mesmo tempo deterioradora e civilizadora pode chegar ao ponto em que uma pessoa que tenha visto aquela ilha em sua fase original sem homens poderia muito bem questionar se fora melhor ou não que os homens a habitassem.
Essas considerações nos dão algumas diretrizes para o desenvolvimento do homem de um ambiente na natureza.
A tristeza da natureza depois do pecado original
Poderíamos dizer que, quando Adão e Eva foram expulsos do Paraíso, uma grande tristeza caiu sobre o Paraíso e a natureza terrestre, porque o rei e a rainha haviam sido corrompidos. O homem e a mulher eram o adorno natural do Paraíso e da natureza e, com sua degradação, ambos sofreram e se tornaram menos belos, trazendo em si mesmos uma nota daquela decadência. Por outro lado, algo daquela beleza original permaneceu e continuou, e a natureza ainda nos dá uma ideia do plano original de Deus para ela, assim como de como ela se teria desenvolvido se o homem não tivesse pecado.
Então, quando o homem age sobre um ambiente natural, ele deve responder a estas perguntas:
- O que ainda reflete o plano paradisíaco original de Deus naquele ambiente e, portanto, deve ser mantido e melhorado?
- Que aspecto da tristeza do pecado original deve ser mantido para nos lembrar que vivemos num vale de lágrimas?
- Que marcas de pecado existem nele que deveriam ser expurgadas?
- Que vestígios do demônio estão presentes nele que devem ser combatidos?
Em suma, o homem precisa discernir quais são as mudanças legítimas que ele como rei deve fazer na natureza para completar o plano de Deus e quais são as mudanças imprudentes que ele quer fazer como uma consequência de suas paixões perversas.
Assim, nosso exemplo da ilha hipotética de Fernando de Noronha nos deu alguns critérios para determinar como o homem deve agir sobre a natureza.
Numa próxima oportunidade, aplicaremos esses critérios à noção de progresso.
Postado em 12 de junho de 2019
| Prof. Plinio |
Sociedade Orgânica foi um tema caro ao falecido Prof. Plinio Corrêa de Oliveira. Ele abordou este tema em inúmeras ocasiões durante a sua vida - às vezes em palestras para a formação de seus discípulos, às vezes em reuniões com amigos que se reuniram para estudar os aspectos sociais e história da cristandade, às vezes apenas de passagem.
Atila S. Guimarães selecionou trechos dessas palestras e conversas a partir das transcrições das fitas e de suas anotações pessoais. Ele traduziu e adaptou-os em artigos para o site da TIA. Nestes textos, a fidelidade às idéias e palavras originais é mantida o máximo possível.
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