A primeira coisa que se deve entender sobre este impressionante livro de Atila Sinke Guimarães é que ele não é um discurso contra o Vaticano II, nem uma polêmica escrita por um tradicionalista assumido para desacreditar o Concílio.
É algo muito diferente, muito mais importante e, no geral, muito mais valioso para os católicos romanos sinceros que ainda tentam entender os resquícios da Igreja pré-conciliar cerca de trinta e cinco anos após o Vaticano II do que uma simples análise ou crítica poderia fornecer.
O que o autor, um brasileiro e membro da Sociedade para a Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP) fundada pelo falecido Professor Plinio Corrêa de Oliveira, fez foi compilar exaustivamente onze (!) volumes de documentação – intitulados com as palavras do lamento de Jesus ao Pai na Cruz: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" (Mt 27,47) – citando não apenas os próprios documentos conciliares, mas os escritos e discursos de vários padres do Concílio, seus periti ou especialistas, seus analistas pré- e post-factum que, em suas próprias palavras, explicam o que o Concílio se propôs a fazer e como.
O "ponto de vista" de Guimarães, se é que se pode dizer que ele tem um, é simplesmente permitir que os documentos do Concílio e as personagens que os prepararam e escreveram, e aqueles que adicionaram suas interpretações "autorizadas" após o seu término, falem por si mesmos! Res et periti loquuntur – os fatos e os especialistas falam por si. Este é um trabalho monumental de pesquisa e um golpe de gênio inspirado e positivo!
Mas não é um quadro feliz. E lança sérias dúvidas sobre a bons fides de muitos dos membros e algumas das principais conclusões do Concílio. Em uma palavra, os autores dos principais documentos conciliares começaram chamando o trabalho do Concílio de "pastoral" – ou seja, não uma revisão dos ensinamentos dogmáticos da Igreja – mas, uma vez concluído o Concílio, chamaram abertamente seus resultados de “dogmáticos.”
Em seguida, eles afirmaram com bastante ousadia que uma desconstrução sistemática dos ensinamentos magistrais da Igreja não só havia sido sua intenção original, mas foi, de fato, a realização do Vaticano II!
Por exemplo, aqui estão as palavras do teólogo dominicano francês, Christian Duquoc, professor de teologia em Lyon e membro do conselho das prestigiosas revistas francesas Lumiere et Vie e Concilium, a respeito do papel da Lumen Gentium, a “Constituição Dogmática (sic) sobre a Igreja” do Concílio: “A Constituição Lumen Gentium, subvertendo a relação entre a hierarquia e o povo, dá um bom testemunho desta necessidade de ruptura com o modelo nascido da Contrarreforma, no qual o povo era praticamente nada e a hierarquia tomava decisões sem supervisão.” (1)
Ou testemunhe as palavras sempre tão hipócritas do próprio Paulo VI, após sua ratificação da obra da segunda sessão do Concílio e seus resíduos (incluindo o Novus Ordo Missae de Bugnini) e alguns meses após sua promulgação atrasada e extremamente controversa da Humanae Vitae, a respeito do manifesto motim doutrinal e pastoral ocorrendo sob sua supervisão:
“Hoje a Igreja está passando por um momento de inquietação. Alguns praticam autocrítica, dir-se-ia até mesmo autodemolição. É como uma perturbação interna, aguda e complexa, como ninguém poderia esperar depois do Concílio...” (2)
E como o Concílio “subverteu” e instigou a “autodemolição” do Magistério da Igreja que parece ter pegado Paulo VI – que estava presente durante todo o período como Cardeal e Papa – de surpresa? Essa é a peça central de Nas Águas Turvas do Vaticano II, o destilado essencial e conclusivo da obra de Guimarães.
Em uma palavra, os “padres” do Concílio e seus colaboradores escolheram deliberadamente esconder a falta de conformidade dos principais documentos conciliares com o Magistério por meio de sua ambiguidade: ou seja, pelo uso de uma linguagem filosoficamente inexata, por apelos às “descobertas das ciências sociais modernas e contemporâneas” e à sincronicidade com “o mundo moderno,” que forneceu camuflagem para tentativas de “alcançar (superficialmente) unanimidade” (o que João XXIII em seu discurso de abertura da primeira sessão do Concílio chamou de sua intenção “pastoral”), mas positivamente para “preparar o futuro” da Igreja (o que Yves Congar, um perito dominicano e porta-voz pós-conciliar “autoritário” em uma entrevista com o autor (fevereiro de 1983) escolheu chamar de “progressista,” e que Guimarães corretamente chama de “modernista,” após a heresia condenada pelo Papa São Pio X em Pascendi e Lamentabili no início do século XX).
Nesse sentido, Guimarães é muito mais sincero que o Cardeal Ratzinger, presente no Concílio como teólogo e agora conselheiro de João Paulo II como chefe da Congregação para a Doutrina da Fé, que em seu livro recente, O Sal da Terra (Inácio), ainda professa não saber para onde vai a Igreja Católica do século XXI!
O método de Guimarães é indutivo, e não dedutivo. Ele examina os conceitos-chave dos documentos conciliares – a Igreja como mistério, como Esposa, como Povo de Deus, como Igreja Pecadora, o conceito de pastoral, mundo, homem, história, evolução, etc. – “tentando analisá-los e extrair de cada um... tudo o que está implícito neles...,” mostrando como esses conceitos levaram o Concílio a um “jogo dialético... provocando uma série de reações psicológicas, simpatia e conivência que transformam aquele que dialoga em vítima... que passa pelo processo [e] acaba por... aderir à dialética hegeliana... até mesmo adquirir uma propensão a aceitar as ideias socialistas e comunistas que outrora combateu.”
O resultado desse diálogo dialético é a acomodação, algo semelhante à “síndrome de Estocolmo,” em que os reféns começam a reagir com simpatia às opiniões de seus guardiões.
No Concílio, as evidências de Guimarães mostram que foram as tendências “progressistas” (ou seja, as tendências modernistas previamente condenadas) que emergiram em considerações, por exemplo, do “mistério” da Igreja, da Igreja como “esposa” e do conceito de democratização niveladora (ou seja, não hierárquica) da Igreja como “povo de Deus.”
Além disso, o conceito da Igreja como “pecadora” é um reflexo da kenosis protestante, que por sua vez termina na teologia da morte de Deus (de Nietzsche); e “pastoral” leva ao existencialismo, etc.” (pp. 40-42). O segundo braço do método de Guimarães é sintético, um “estudo do pensamento dos principais teólogos que idealizaram e aplicaram [os princípios do] Concílio, e... tentando determinar seu sistema de pensamento: sua subestrutura, métodos e objetivos.”
Assim, ele entrevistou os autores conciliares e “outras personalidades agora em posição de destaque no mundo teológico,” permitindo-lhe assim “esclarecer vários pontos de seu pensamento, aprender alguns detalhes sobre a história de suas ações no Concílio e reunir uma bibliografia selecionada... [assim] poupando-nos anos de estudo, dando-nos a vantagem de um navegador que possui um mapa preciso, em oposição a um que navega ao acaso” (p. 42).
Os capítulos I a VI são um exame detalhado da “ambiguidade” que Guimarães encontra nos textos conciliares, as razões para isso, testemunhos confiáveis sobre a ambiguidade da linguagem do Concílio e as estratégias que levaram a ela, as tentativas pós-conciliares dos “progressistas” (modernistas) de extrair “consequências ainda mais radicais disso” e – especialmente valiosas e fascinantes – a ambiguidade como “fruto do choque entre dois conceitos opostos... de Igreja.”
Os capítulos restantes constituem algumas das melhores análises do ethos do Vaticano II, seus fundamentos e consequências teológicas que tenho visto – superando em muito, em escopo e clareza, inúmeros artigos em jornais e na imprensa popular que nunca abordam a óbvia "floresta" em meio às árvores: o afastamento radical do Concílio Vaticano II da tradição que o precedeu e, de fato, deveria tê-lo ancorado.
Por exemplo, o capítulo VII explica a "doutrina" que subjaz à ambiguidade, ou seja, que uma teologia "hesitante" é normal, que a Igreja é parte da evolução e, portanto, semper reformanda - sempre precisando de reforma.
O capítulo VIII lança um duro holofote sobre algumas das omissões gritantes – "tendenciosas,” como o autor as chama – como a falha do Concílio em falar sobre a virgindade perpétua de Maria, sobre o pecado original e a existência do Inferno, sua falha em distinguir adequadamente entre a Igreja Militante e a Igreja Triunfante, em falar do caráter romano da Igreja e do papel e sobrevivência dos Patriarcados Ocidentais. Da mesma forma, como o Concílio falhou em lidar com as invasões do freudismo na moral.
Tendo como pano de fundo as viagens contínuas de João Paulo II e seus constantes esforços ecumênicos, o capítulo IX trata da ambiguidade do Concílio, que trouxe concessões a outras religiões e ao mundo moderno, particularmente na liturgia da Missa e no papel sacerdotal dos fiéis.
O capítulo X une certos fios soltos, como a escandalosa falta de unidade na Igreja, a ira dos devotos do Concílio (os arditi – literalmente, os “ardentes” ou os “cabeças-quentes”) em relação aos conservadores e a lentidão da “reforma,” (3) crises nas fileiras do clero, o abandono do ministério por muitos padres e controvérsias sobre o celibato, padres casados e a suposta “escassez” de vocações.
Aqui também, Guimarães aborda o concubinato sacerdotal, o alcoolismo e a homossexualidade/pedofilia (o Apêndice – uma “Visão Geral da Igreja Católica e da homossexualidade” – vale o preço do livro).
Finalmente, ele escreve sobre a “Crise das Ordens Religiosas” (usando os jesuítas como paradigma) e das Religiosas, e a “Crise da Fé entre os fiéis.”
Obviamente, admiro este livro – tanto pela força de sua erudição quanto por suas conclusões, que são a melhor explicação que já vi sobre o que o Concílio fez. Mas não é preciso aceitar todas as conclusões do autor (acontece que eu exemplifiquei e esclareceria algumas delas... uma tarefa que espero que alguém ainda empreenda), para reconhecer que este jovem brasileiro respondeu à pergunta tantas vezes sentida, mas geralmente não dita: “Meu Deus, meu Deus, o que o Concílio fez? Por que essa confusão, por que essa podridão perceptível? O que aconteceu com a nossa Fé e com a nossa Igreja?”
Um livro como Nas Águas Turvas do Vaticano II pode ser uma tarefa árdua para alguns, mas todos podem se beneficiar dela.
Já é um anátema para os entusiastas que continuam a balançar seus cavalos de batalha (Chamado à Ação, Common Ground), que amam a ilusão do movimento, mas que – como um deles, o Pe. David Crosby, OFM – admitiram recentemente, com referência à desastrosa iniciativa "Nós somos Igreja,” que, depois de todos esses anos, seus cavalos de batalha radicais não vão a lugar nenhum (mesmo que alguns bispos e burocratas modernistas precisem ter suas mãos mortas arrancadas das rédeas da autoridade).
Mas este livro é um raio de luz na tempestade que se aproxima, vale a pena o esforço e deve servir como referência padrão sobre o Vaticano II nos próximos anos.
Aliás, sugiro que o leitor compre três exemplares: um para si mesmo, um para um seminarista, pastor ou religioso, e um para o seu bispo.
Mesmo que o seu presente cause uma negação maciça da parte deles, ele acumulará "brasas de dúvida" sobre a ignorância ou a autoconfiança triunfalista deles, conforme o caso. E digo isso com todo o amor e respeito!
“Dada a atualidade do tema deste artigo (1998), TIA do Brasil resolveu republicá-lo - mesmo se alguns dados são antigos - para benefício de nossos leitores.”
1. “Il popolo di Dio, soggetto attivo della fede nella chiesa,” in Concilum, 1985/ 4, pp. 102-4.
2. Alocução aos Estudantes do Seminário Lombardo, 7 de dezembro de 1968.
3. Nota bene, Rembert Weakland, John Ouinn, Matthew Clark, Call to Action, Common Grounders et al.
Postado em 12 de setembro de 2025
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