Virtudes Católicas
Caminhos Verdadeiros e Falsos para a Felicidade - XXXIII
A harmoniosa sinfonia do
mundo dos possíveis
A contemplação sacral também pode ter por objeto a esfera dos possíveis, isto é, dos seres que poderiam existir, mas não existem. Quem se dedicar a essa busca dos possíveis verá um verdadeiro universo se desenrolar diante de si, pois todo ser existente tem semelhanças com inúmeros seres que não existem e nunca existirão.
Mas, como alguém contempla algo que não existe?
Essa possibilidade é mais fácil de entender indo para o exemplo da pintura.
O pintor par excellence de panoramas inexistentes, mas possíveis é o célebre francês Claude Lorrain (1600-1682). Ele poderia compor uma cidade que não existe, justapondo à realidade coisas que raramente existem ou que não existem.
Ele apresenta, por exemplo, uma cidade sem ruas definidas à beira-mar, onde os navios chegam para descarregar suas mercadorias. Dois ou três navios chegam do mar ao cais, onde se aglomeram vários grupos de pessoas. Tudo é calmo e sereno, sem nada daquele movimento agitado, intenso e prosaico dos cais de hoje.
Neste cenário sente-se o encanto do mar, o encanto do navio que regressa de uma viagem, que na altura era quase tão arriscada como é hoje uma viagem à Lua.
O navio que vemos vem daquela nova terra selvagem que era então a América – ou talvez da Ásia – carregado de ouro, pedras preciosas, joias, porcelanas, tapetes e especiarias.
O navio chega a um cais ladeado por palácios. A beleza do mar, dos palácios, das riquezas e das especiarias que vão chegando e serão descarregadas se justapõem, apontando a beleza da viagem e a beleza do comércio.
Vivendo nas franjas do sol
Mas o grande talento do artista foi pintar suas cenas sob uma luz gloriosa de um sol dourado, que nos dá a impressão de um ar muito leve, uma atmosfera irreal, tão diferente da poluição das megalópoles modernas.
Essa cena comunica a impressão de que o homem que ali vive tem uma espécie de vida superior, diáfana e agradável, num mundo banhado por um ideal que vem do sol ou do céu: o indivíduo sente-se de alguma forma um morador o sol.
O homem que contempla certas pinturas de Claude Lorrain não pode deixar de sentir como se residisse mentalmente nas franjas do sol, naqueles primeiros raios dourados do sol ainda acessíveis ao homem. Ou numa região tão etérea e tão delicada que alguns raios de sol se estendem por ali de forma encantadora, mesmo sem serem tão dourados quanto o sol.
Nessas pinturas de Lorrain não há nada tempestuoso; não há vento, nem mesmo uma brisa. As personagens movem-se lentamente, com majestade, distinção e uma naturalidade simples; as árvores, por assim dizer, estão paradas no ar, como se dissessem: "Cheguei ao ponto perfeito do meu bem-estar, e aqui nem o vento pode me incomodar ou me abalar. Eu sou uma árvore, mas com um tipo de inteligência que não é do reino vegetal."
Pode-se dizer que a árvore sente a delicadeza do ar ao seu redor, e que o ar envolve a árvore com delícias às quais ela é insensível por natureza, mas não no mundo criado por este artista.
Em tudo isto, o homem é transportado para o maravilhoso.
As pinturas de Claude Lorrain insinuam o fato de que, entre as belezas da natureza, há algumas que são proporcionais à ordem natural em que vivemos. Mas há outros tão magníficos que parecem desproporcionais a essa ordem. São tão magníficos que nos fazem pensar num outro universo, um mundo que nos pode parecer irreal ou inexistente, mas para o qual a nossa alma é irresistivelmente atraída.
O mar transborda com o horizonte do possível
Entre essas belezas da natureza está o oceano. O mar tem tudo. Apresenta um horizonte dos possíveis. Percebo que uma das razões pelas quais gosto tanto do mar é que ele é altamente sugestivo dos possíveis. Para mim, é muito mais sugestivo do que o topo de uma montanha, por exemplo. E o topo de uma montanha é uma coisa muito bela!
O que mais me entusiasma no mar não são as costas, mas a ideia de que para além de onde os meus olhos podem ver existem mundos que não conheço. Essa pequena abertura para eles é apenas uma amostra.
Então, minha alma encontra aquele repouso que corresponde à célebre frase de Santo Agostinho: "Meu Deus, fomos criados para Vós e nosso coração está inquieto até que descanse em Vós." Entendemos a vanitas vanitatum (vaidade das vaidades) das coisas deste mundo. Quando alguém é colocado diante de tais horizontes, deseja permanecer ali por um tempo.
As pinturas de Claude Lorrain e a consideração do mar são formas adequadas de nos introduzir no mundo dos possíveis. É o oposto do mundo do positivismo, (1) escola do século 19 que ainda exerce suas influências em nossos dias. Segundo ela, é necessário ser hostil a tudo que vai além do físico, tangível e científico, e assim abster-se cuidadosamente de todas as especulações inúteis.
Os possíveis e a criatividade
Se existe uma capacidade que muitas pessoas desejam ter, é a criatividade. Todos querem ser criativos, e assim abrir para si os portais dos mais variados domínios da atividade humana. Ora, a relação entre os possíveis e a criatividade não é difícil de estabelecer: Criar é dar uma existência real a um possível.
Alguém, por exemplo, quer construir uma torre. Ele tem diante de seus olhos esboços de um grande número de torres possíveis. Quanto mais numerosas e bem feitas forem essas torres e quanto mais hábil for a escolha do construtor, mais excelente será a torre. Na escolha que faz entre os possíveis está sua criatividade. Não é viável ser um espírito criativo sem ter um senso aguçado do que é possível.
Nesse processo, há um certo momento em que a figura do que ele quer construir fica tão clara que no fundo de sua alma o homem solta uma espécie de clamor que expressa e simboliza a coisa. Esse momento, em relação ao processo geral, é mais ou menos como o momento em que, numa daquelas ilhas de coral, a margem avermelhada que se eleva do fundo do oceano mostra sua cabeça acima das águas. E então recebe o primeiro raio de sol.
Pode-se dizer que só o que é útil é belo. Não tanto! É lindo todo o processo, todo aquele trabalho que começou no fundo do mar até chegar ao topo e emergir como um recife de coral. Esta é uma imagem do caminho que os possíveis percorrem na mente humana até se tornarem realidade.
A criança pode passar por um processo pelo qual adquire duas cognições ao mesmo tempo: a do mundo real e a do mundo dos possíveis. Essas primeiras percepções são prodigiosamente ricas, que detonam esse mundo dos possíveis. Por outro lado, o que pode prevalecer nela é uma mania pela pura realidade palpável, muito nobre em um sentido, mas extremamente deficiente em outro.
Uma das coisas mais sugestivas da literatura e da arte é nos permitir entrar nos mundos dos possíveis, mundos que sabemos não serem reais, mas que elevam nosso pensamento. Uma das expressões mais altas da Escola filosófica católica de São Vítor (2) é fazer-nos, por meio do real, entrar em contato com o irreal, com aquilo que nossa alma sonha e almeja, como escadas internas que conduzem ao Céu. Quem faz isso não é um sonhador: é um pensador.
Continua
Mas, como alguém contempla algo que não existe?
Essa possibilidade é mais fácil de entender indo para o exemplo da pintura.
Claude Lorrain: Seaport at Sunset, 1639
Ele apresenta, por exemplo, uma cidade sem ruas definidas à beira-mar, onde os navios chegam para descarregar suas mercadorias. Dois ou três navios chegam do mar ao cais, onde se aglomeram vários grupos de pessoas. Tudo é calmo e sereno, sem nada daquele movimento agitado, intenso e prosaico dos cais de hoje.
Neste cenário sente-se o encanto do mar, o encanto do navio que regressa de uma viagem, que na altura era quase tão arriscada como é hoje uma viagem à Lua.
O navio que vemos vem daquela nova terra selvagem que era então a América – ou talvez da Ásia – carregado de ouro, pedras preciosas, joias, porcelanas, tapetes e especiarias.
O navio chega a um cais ladeado por palácios. A beleza do mar, dos palácios, das riquezas e das especiarias que vão chegando e serão descarregadas se justapõem, apontando a beleza da viagem e a beleza do comércio.
Vivendo nas franjas do sol
Mas o grande talento do artista foi pintar suas cenas sob uma luz gloriosa de um sol dourado, que nos dá a impressão de um ar muito leve, uma atmosfera irreal, tão diferente da poluição das megalópoles modernas.
Paisagens de Claude Lorrain
O homem que contempla certas pinturas de Claude Lorrain não pode deixar de sentir como se residisse mentalmente nas franjas do sol, naqueles primeiros raios dourados do sol ainda acessíveis ao homem. Ou numa região tão etérea e tão delicada que alguns raios de sol se estendem por ali de forma encantadora, mesmo sem serem tão dourados quanto o sol.
Nessas pinturas de Lorrain não há nada tempestuoso; não há vento, nem mesmo uma brisa. As personagens movem-se lentamente, com majestade, distinção e uma naturalidade simples; as árvores, por assim dizer, estão paradas no ar, como se dissessem: "Cheguei ao ponto perfeito do meu bem-estar, e aqui nem o vento pode me incomodar ou me abalar. Eu sou uma árvore, mas com um tipo de inteligência que não é do reino vegetal."
Pode-se dizer que a árvore sente a delicadeza do ar ao seu redor, e que o ar envolve a árvore com delícias às quais ela é insensível por natureza, mas não no mundo criado por este artista.
Em tudo isto, o homem é transportado para o maravilhoso.
As pinturas de Claude Lorrain insinuam o fato de que, entre as belezas da natureza, há algumas que são proporcionais à ordem natural em que vivemos. Mas há outros tão magníficos que parecem desproporcionais a essa ordem. São tão magníficos que nos fazem pensar num outro universo, um mundo que nos pode parecer irreal ou inexistente, mas para o qual a nossa alma é irresistivelmente atraída.
O mar transborda com o horizonte do possível
Entre essas belezas da natureza está o oceano. O mar tem tudo. Apresenta um horizonte dos possíveis. Percebo que uma das razões pelas quais gosto tanto do mar é que ele é altamente sugestivo dos possíveis. Para mim, é muito mais sugestivo do que o topo de uma montanha, por exemplo. E o topo de uma montanha é uma coisa muito bela!
O oceano oferece um horizonte do possível
Então, minha alma encontra aquele repouso que corresponde à célebre frase de Santo Agostinho: "Meu Deus, fomos criados para Vós e nosso coração está inquieto até que descanse em Vós." Entendemos a vanitas vanitatum (vaidade das vaidades) das coisas deste mundo. Quando alguém é colocado diante de tais horizontes, deseja permanecer ali por um tempo.
As pinturas de Claude Lorrain e a consideração do mar são formas adequadas de nos introduzir no mundo dos possíveis. É o oposto do mundo do positivismo, (1) escola do século 19 que ainda exerce suas influências em nossos dias. Segundo ela, é necessário ser hostil a tudo que vai além do físico, tangível e científico, e assim abster-se cuidadosamente de todas as especulações inúteis.
Os possíveis e a criatividade
Se existe uma capacidade que muitas pessoas desejam ter, é a criatividade. Todos querem ser criativos, e assim abrir para si os portais dos mais variados domínios da atividade humana. Ora, a relação entre os possíveis e a criatividade não é difícil de estabelecer: Criar é dar uma existência real a um possível.
Alguém, por exemplo, quer construir uma torre. Ele tem diante de seus olhos esboços de um grande número de torres possíveis. Quanto mais numerosas e bem feitas forem essas torres e quanto mais hábil for a escolha do construtor, mais excelente será a torre. Na escolha que faz entre os possíveis está sua criatividade. Não é viável ser um espírito criativo sem ter um senso aguçado do que é possível.
Ilha de coral e tubarões de recife em Siam Bay, Tailândia
Pode-se dizer que só o que é útil é belo. Não tanto! É lindo todo o processo, todo aquele trabalho que começou no fundo do mar até chegar ao topo e emergir como um recife de coral. Esta é uma imagem do caminho que os possíveis percorrem na mente humana até se tornarem realidade.
A criança pode passar por um processo pelo qual adquire duas cognições ao mesmo tempo: a do mundo real e a do mundo dos possíveis. Essas primeiras percepções são prodigiosamente ricas, que detonam esse mundo dos possíveis. Por outro lado, o que pode prevalecer nela é uma mania pela pura realidade palpável, muito nobre em um sentido, mas extremamente deficiente em outro.
Uma das coisas mais sugestivas da literatura e da arte é nos permitir entrar nos mundos dos possíveis, mundos que sabemos não serem reais, mas que elevam nosso pensamento. Uma das expressões mais altas da Escola filosófica católica de São Vítor (2) é fazer-nos, por meio do real, entrar em contato com o irreal, com aquilo que nossa alma sonha e almeja, como escadas internas que conduzem ao Céu. Quem faz isso não é um sonhador: é um pensador.
Continua
- Segundo a visão positivista, o "homem evoluído," forte e "iluminado" pelo positivismo, com os pés bem assentes na terra, via os homens de séculos passados com desprezo e até pena. Sabemos o que resultou dessa concepção! Auguste Comte (1798-1857) fundou até uma igreja e uma religião positivista. Em Londres, os membros da London Positivist Society criaram uma Igreja da Humanidade sem nada de sobrenatural ou metafísico, apenas o culto aos grandes homens produzidos pela humanidade.
- A Escola de São Vitor, também conhecida como Vitorina, foi uma escola do século 12 baseada na Abadia Agostina de São Vitor em Paris. Sua característica ligada ao tema deste artigo foi sua contemplação baseada em Deus como causa exemplar da Criação, o que significa que Deus é espelhado no Universo que criou. As Vitorinas buscavam a satisfação de todos os sentidos humanos corporais e espirituais como meta final dessa contemplação e prefiguração da visão beatífica. Os principais nomes desta escola são Hugo de São Vitor, Ricardo de São Vitor e André de São Vitor.
Postado em 6 de março de 2023