Questões Tradicionalistas
Missa de Diálogo - XXX
Inversão Litúrgica: Povo Primeiro, Deus Depois
Voltando novamente à venerável fórmula lex orandi, lex credendi, podemos ver que a liturgia revela o que realmente acreditamos e como nos vemos em relação a Deus. É evidente que cada parte da Missa tradicional – cada um de seus rituais, gestos e orações – tem uma dimensão transcendente que reflete a suprema honra devida a Deus. Mas há uma inversão no coração do Movimento Litúrgico que reflete a exaltação do homem e levou ao abandono quase total da reverência e do sentido do sagrado na liturgia.
Jungmann estava insatisfeito (mas não é a insatisfação a marca registrada de todos os progressistas?) com uma liturgia que era “vista quase exclusivamente como uma ação de Deus.” Preferiu, em vez disso, deslocar o centro de gravidade para o “Povo de Deus em oração.” Ele acreditava que o povo, e não apenas o padre, deveria ter um papel central na liturgia mesmo durante o Cânon, a parte mais sagrada e solene da Missa.
O seguinte trecho de sua magnum opus ilustra isso em poucas palavras:
“Uma oração de ação de graças surge da congregação e é levada a Deus pelo sacerdote; passa para as palavras de consagração e depois para a oblação dos dons sagrados e esta oblação, por sua vez, termina com uma palavra solene de louvor.” (1)
Aqui, a oração de ação de graças do povo se confunde imperceptivelmente com as palavras da Consagração, de modo que qualquer distinção entre o sacerdote e os leigos é extremamente imperceptível. Dá-se a impressão de que são as pessoas reunidas que são os verdadeiros ministros da Consagração e que juntos cumprem a Instituição de Cristo.
“É todo o povo crente que constitui a Ecclesia, que se aproxima de Deus em oração através da liturgia.” (2) Isso, insistiu Jungmann, era essencial: “No início da era Cristã, a liturgia era essencialmente adoração pública corporativa.” (3)
Em outras palavras, ele estava ensinando a noção protestante de que a Eucaristia é essencialmente um banquete do povo reunido; foi sua ação de louvor e ação de graças que deu sentido aos ritos. De acordo com essa noção progressista, a Igreja se desviou ao privilegiar o sacerdote sobre os leigos na celebração da liturgia.
A influência de Jungmann foi de longo alcance e profunda, a julgar pelas liturgias centradas no homem que agora são a norma. Há pouca ou nenhuma consciência de Deus nesta compreensão típica do Novus Ordo explicada pelo Pe. Carmelita Gregório Klein:
“A Eucaristia começa com a assembleia, o povo se reúne em nome de Jesus Cristo. Embora os detalhes do ambiente em que as pessoas se reúnem, a ocasião em que as pessoas se reúnem e a maneira como as pessoas se reúnem não sejam importantes, a Eucaristia é sobre pessoas.” (4)
Menos reverência a Deus, mais 'participação ativa'
Jungmann atacou a Missa tradicional alegando que a congregação não tinha um papel ativo a desempenhar, e reclamou que, correspondentemente, “a Missa se torna ainda mais o mistério da vinda de Deus homem, um mistério que se deve admirar com adoração e contemplar de longe.” (5) [ênfase adicionada]
Esta é uma indicação clara de que Jungmann viu uma correlação inversa entre a participação ativa dos leigos e uma liturgia centrada em Deus: na medida em que a primeira diminui, a segunda aumenta.
Assim, quando Deus e o homem são pesados na balança, produz-se um acentuado efeito de gangorra. Uma honra muito alta prestada a Deus na liturgia era, segundo Jungmann, a ser evitada, sob a alegação de que rebaixava a dignidade dos leigos importantíssimos: seus “direitos” de “participar ativamente” deveriam estar sempre em ascensão.
Mas, desde quando era considerado injusto e opressivo colocar a suprema reverência devida a Deus acima dos interesses dos leigos? Somente desde que o Movimento Litúrgico decidiu que Deus era um obstáculo inconveniente aos seus supostos direitos de “participar ativamente” da liturgia.
Com o Vaticano II, a gangorra pendeu definitivamente a favor do homem: a Constituição da Liturgia determina que “a participação ativa de todo o povo é o objetivo a ser considerado antes de tudo.” E, para que ninguém desconheça a suprema importância de tal participação, a Constituição da Liturgia a descreve bem: a frase é repetida 17 vezes no documento. (6)
A reverência ao Santíssimo Sacramento, um obstáculo
Como a reverência – ou a falta dela – é, em última análise, uma questão de fé, Jungmann revelou a objeção básica dos reformadores litúrgicos de colocar Deus em primeiro lugar:
“Devemos ver o Tabernáculo como um obstáculo à celebração [da Missa] … porque a presença da Santíssima Eucaristia desde o início da Missa deve prejudicar a lógica do curso da celebração.” (7)
Foi essa lógica ilusória e diabólica que transformou a liturgia em “obra do povo” e a igreja na “casa do povo,” na qual a morada de Deus é diariamente desonrada por celebrações centradas no homem.
Essa lógica de “povo primeiro” levou ao virtual desaparecimento da reverência e solenidade que tradicionalmente caracterizam a liturgia, a recepção da Comunhão e as devoções em honra do Santíssimo Sacramento. E sua retirada repentina certamente teria um impacto negativo na fé na Presença Real.
Pois os símbolos e sinais de adoração comunicavam algo dos mistérios sagrados aos humildes fiéis de uma maneira que as palavras dos estudiosos litúrgicos muitas vezes não conseguiam transmitir.
Jungmann chegou mesmo a menosprezar a devoção ao Santíssimo Sacramento, criticando o sentimento de temor demonstrado pelos fiéis diante da Presença Real: “uma atividade sacrificial somente do sacerdote, induzindo admiração pela presença de Cristo entre os espectadores litúrgicos.” (8)
Suas teorias estavam por trás do impulso para marginalizar o maior de todos os Sacramentos: “A medida em que a Presença sacramental se torna central é também a medida em que o pensamento verdadeiramente sacramental desaparece.” (9)
Mas, a história pós-conciliar provou exatamente o contrário: a medida em que o culto do homem se torna central é também a medida em que a crença na Presença sacramental desaparece.
'Quanto é em ti, desterras o temor (de Deus), destróis a piedade de Deus devida' (Jó 15:4)
Jungmann admitiu uma diminuição da estima pela Presença Real: “O movimento litúrgico, foi dito, reduziu a honra paga ao Salvador na Eucaristia. Pode ser assim.”
Em sua opinião, porém, os ganhos em termos de participação leiga superam em muito a diminuição da latria. (10)
No entanto, sem a devida reverência a Deus, a liturgia torna-se auto referencial e terrena. A reverência e o temor são respostas essenciais à presença de Deus, sinal de que os fiéis estão conscientes da realidade e da transcendência de Deus.
É óbvio para nós agora que a própria ideia de reverência e até mesmo a inclinação para ela desapareceram em grande parte na liturgia moderna. O clero foi o primeiro a renegar o dever de reverência para com o Santíssimo Sacramento, seguido pelos fiéis que parecem não se sentir ofendidos ou nem um pouco incomodados com a sua ausência.
Não há fumaça sem fogo
Em relação ao dito banal do Papa Paulo VI de que “por alguma rachadura ou fissura a fumaça de Satanás entrou no templo de Deus” (11) surge a pergunta: quem foi o principal culpado por alimentar o fogo que fez a fumaça rodopiar pelo santuário?
Ninguém pensou em apontar para Jungmann. Ele era muito erudito, muito respeitado entre a intelectualidade, liberal, muito bem protegido por todos os Papas de Pio XII a Paulo VI. No entanto, muitos de seus escritos incorporavam um horror à reverência e uma rejeição das dimensões sobrenaturais da liturgia. Ao promover continuamente os leigos ao primeiro plano, ele traiu o desejo de obscurecer a sacralidade do Santo Sacrifício e diminuir a consciência do mistério nas mentes dos fiéis.
A “fissura” foi a Constituição da Liturgia do Vaticano II, particularmente o seu §14, que fez da “participação ativa” dos leigos um ponto central do culto Católico, invertendo assim a orientação tradicional. Tal revolução na lex orandi – refletindo antes de tudo a “obra do povo” e, portanto, implicando uma desonra a Deus – não poderia ter sido inspirada pelo Espírito Santo.
Continua
“Dada a atualidade do tema deste artigo (24 de fevereiro de 2016), TIA do Brasil resolveu republicá-lo - mesmo se alguns dados são antigos - para benefício de nossos leitores.”
Postado em 13 de julho de 2022
A 'plena participação' da congregação no Pai Nosso; abaixo, a participação ganha novas dimensões em uma Missa carismática brasileira
O seguinte trecho de sua magnum opus ilustra isso em poucas palavras:
“Uma oração de ação de graças surge da congregação e é levada a Deus pelo sacerdote; passa para as palavras de consagração e depois para a oblação dos dons sagrados e esta oblação, por sua vez, termina com uma palavra solene de louvor.” (1)
Aqui, a oração de ação de graças do povo se confunde imperceptivelmente com as palavras da Consagração, de modo que qualquer distinção entre o sacerdote e os leigos é extremamente imperceptível. Dá-se a impressão de que são as pessoas reunidas que são os verdadeiros ministros da Consagração e que juntos cumprem a Instituição de Cristo.
“É todo o povo crente que constitui a Ecclesia, que se aproxima de Deus em oração através da liturgia.” (2) Isso, insistiu Jungmann, era essencial: “No início da era Cristã, a liturgia era essencialmente adoração pública corporativa.” (3)
Em outras palavras, ele estava ensinando a noção protestante de que a Eucaristia é essencialmente um banquete do povo reunido; foi sua ação de louvor e ação de graças que deu sentido aos ritos. De acordo com essa noção progressista, a Igreja se desviou ao privilegiar o sacerdote sobre os leigos na celebração da liturgia.
A influência de Jungmann foi de longo alcance e profunda, a julgar pelas liturgias centradas no homem que agora são a norma. Há pouca ou nenhuma consciência de Deus nesta compreensão típica do Novus Ordo explicada pelo Pe. Carmelita Gregório Klein:
“A Eucaristia começa com a assembleia, o povo se reúne em nome de Jesus Cristo. Embora os detalhes do ambiente em que as pessoas se reúnem, a ocasião em que as pessoas se reúnem e a maneira como as pessoas se reúnem não sejam importantes, a Eucaristia é sobre pessoas.” (4)
Menos reverência a Deus, mais 'participação ativa'
Jungmann atacou a Missa tradicional alegando que a congregação não tinha um papel ativo a desempenhar, e reclamou que, correspondentemente, “a Missa se torna ainda mais o mistério da vinda de Deus homem, um mistério que se deve admirar com adoração e contemplar de longe.” (5) [ênfase adicionada]
Uma liturgia que dá glória a Deus com pompa e cerimônia era desagradável para Jungmann
Assim, quando Deus e o homem são pesados na balança, produz-se um acentuado efeito de gangorra. Uma honra muito alta prestada a Deus na liturgia era, segundo Jungmann, a ser evitada, sob a alegação de que rebaixava a dignidade dos leigos importantíssimos: seus “direitos” de “participar ativamente” deveriam estar sempre em ascensão.
Mas, desde quando era considerado injusto e opressivo colocar a suprema reverência devida a Deus acima dos interesses dos leigos? Somente desde que o Movimento Litúrgico decidiu que Deus era um obstáculo inconveniente aos seus supostos direitos de “participar ativamente” da liturgia.
Com o Vaticano II, a gangorra pendeu definitivamente a favor do homem: a Constituição da Liturgia determina que “a participação ativa de todo o povo é o objetivo a ser considerado antes de tudo.” E, para que ninguém desconheça a suprema importância de tal participação, a Constituição da Liturgia a descreve bem: a frase é repetida 17 vezes no documento. (6)
A reverência ao Santíssimo Sacramento, um obstáculo
Como a reverência – ou a falta dela – é, em última análise, uma questão de fé, Jungmann revelou a objeção básica dos reformadores litúrgicos de colocar Deus em primeiro lugar:
“Devemos ver o Tabernáculo como um obstáculo à celebração [da Missa] … porque a presença da Santíssima Eucaristia desde o início da Missa deve prejudicar a lógica do curso da celebração.” (7)
As crianças chamadas ao altar para participar perdem o senso de reverência, o que leva a uma recepção completamente casual da Comunhão, abaixo
Essa lógica de “povo primeiro” levou ao virtual desaparecimento da reverência e solenidade que tradicionalmente caracterizam a liturgia, a recepção da Comunhão e as devoções em honra do Santíssimo Sacramento. E sua retirada repentina certamente teria um impacto negativo na fé na Presença Real.
Pois os símbolos e sinais de adoração comunicavam algo dos mistérios sagrados aos humildes fiéis de uma maneira que as palavras dos estudiosos litúrgicos muitas vezes não conseguiam transmitir.
Jungmann chegou mesmo a menosprezar a devoção ao Santíssimo Sacramento, criticando o sentimento de temor demonstrado pelos fiéis diante da Presença Real: “uma atividade sacrificial somente do sacerdote, induzindo admiração pela presença de Cristo entre os espectadores litúrgicos.” (8)
Suas teorias estavam por trás do impulso para marginalizar o maior de todos os Sacramentos: “A medida em que a Presença sacramental se torna central é também a medida em que o pensamento verdadeiramente sacramental desaparece.” (9)
Mas, a história pós-conciliar provou exatamente o contrário: a medida em que o culto do homem se torna central é também a medida em que a crença na Presença sacramental desaparece.
'Quanto é em ti, desterras o temor (de Deus), destróis a piedade de Deus devida' (Jó 15:4)
Jungmann admitiu uma diminuição da estima pela Presença Real: “O movimento litúrgico, foi dito, reduziu a honra paga ao Salvador na Eucaristia. Pode ser assim.”
Uma Missa de estádio que mais parece um festival de rock... toda reverência foi abandonada
No entanto, sem a devida reverência a Deus, a liturgia torna-se auto referencial e terrena. A reverência e o temor são respostas essenciais à presença de Deus, sinal de que os fiéis estão conscientes da realidade e da transcendência de Deus.
É óbvio para nós agora que a própria ideia de reverência e até mesmo a inclinação para ela desapareceram em grande parte na liturgia moderna. O clero foi o primeiro a renegar o dever de reverência para com o Santíssimo Sacramento, seguido pelos fiéis que parecem não se sentir ofendidos ou nem um pouco incomodados com a sua ausência.
Não há fumaça sem fogo
Em relação ao dito banal do Papa Paulo VI de que “por alguma rachadura ou fissura a fumaça de Satanás entrou no templo de Deus” (11) surge a pergunta: quem foi o principal culpado por alimentar o fogo que fez a fumaça rodopiar pelo santuário?
Ninguém pensou em apontar para Jungmann. Ele era muito erudito, muito respeitado entre a intelectualidade, liberal, muito bem protegido por todos os Papas de Pio XII a Paulo VI. No entanto, muitos de seus escritos incorporavam um horror à reverência e uma rejeição das dimensões sobrenaturais da liturgia. Ao promover continuamente os leigos ao primeiro plano, ele traiu o desejo de obscurecer a sacralidade do Santo Sacrifício e diminuir a consciência do mistério nas mentes dos fiéis.
A “fissura” foi a Constituição da Liturgia do Vaticano II, particularmente o seu §14, que fez da “participação ativa” dos leigos um ponto central do culto Católico, invertendo assim a orientação tradicional. Tal revolução na lex orandi – refletindo antes de tudo a “obra do povo” e, portanto, implicando uma desonra a Deus – não poderia ter sido inspirada pelo Espírito Santo.
Continua
- Josef Jungmann, A Missa do Rito Romano, vol. 2, p. 101
- J. Jungmann, ‘A Derrota do Arianismo Teutônico e a Revolução da Cultura Religiosa no Início da Idade Média', em Pastoral Liturgy, Nova York: Herder and Herder, 1962, p. 101. Jungmann havia escrito este ensaio em 1947.
- Ibid., p. 2.
- Gregory Klein, O. C., Fundamentos Pastorais dos Sacramentos, Paulist Press, 1998, p. 86.
- J. Jungmann, A Missa do Rito Romano, vol. 1, p. 84
- Há 12 referências à “participação ativa”; quatro para “participação”, no sentido ativo da palavra, e um para “participar de forma inteligente, ativa e fácil.”
- J. Jungmann, Anunciando a Palavra de Deus, traduzido do alemão por Ronald Walls, Londres: Burns and Oates, 1967, p. 122.
- J. Jungmann, O Lugar de Cristo na Oração Litúrgica, trad. Geoffrey Chapman, Collegeville, MN: The Liturgical Press, 1989, 1965, p. 263. A primeira edição foi publicada em 1925, quando Jungmann era um jovem professor universitário em Innsbruck. Foi elogiado por dois de seus devotos, Dom Odo Casel e Pe. Karl Adam, como uma grande contribuição para o Movimento Litúrgico.
- J. Jungmann, ‘A Derrota do Arianismo Teutônico’, p. 88.
- “Compreendemos melhor a Igreja, a Igreja que celebra a Eucaristia e a unidade da Igreja que o sacramento exige; entendemos melhor o batismo do qual nasce a Igreja; e a Escritura, a outra mesa de Deus que nos nutre no início de cada celebração eucarística, adquiriu uma relevância nova e mais rica.” (JA Jungmann, “Eucharistic Piety”, em The Way: A Quarterly Review of Christian Spirituality, Londres, vol.3, n.2, 1963, p. 94). A revista (1961-1986) foi uma publicação interna produzida pelos Jesuítas da Igreja da Imaculada Conceição, Farm Street, no distrito de Mayfair, em Londres.
- “da qualche fessura sia entrato il fumo di Satana nel tempio di Dio”: Homilia de Paulo VI em 29 de junho de 1972.
“Dada a atualidade do tema deste artigo (24 de fevereiro de 2016), TIA do Brasil resolveu republicá-lo - mesmo se alguns dados são antigos - para benefício de nossos leitores.”
Postado em 13 de julho de 2022
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