Há no espírito humano hoje algo que tende sempre a apresentar a realidade de uma maneira complicada. As pessoas tentam dar a impressão de que são importantes e, para isso, complicam as coisas que normalmente são simples. Eu acredito que este é um dos frutos da Revolução.
Eu sigo um método de exposição oposto. Tento apresentar as coisas simples como elas são e reduzir as coisas complicadas a coisas simples. Coisas complicadas e simples devem ser apresentadas da forma mais clara possível, para que possam ser compreendidas por um maior número de pessoas.
O relacionamento orgânico é uma dessas coisas simples. É tão simples que pode ser decepcionante.
Não me lembro do autor de um romance que li quando criança – eu achava que era Júlio Verne, mas alguém me disse que ele não escreveu sobre esse assunto. Naquela ficção, o escritor supunha que devido a alguma ocorrência meteorológica extraordinária, uma pequena parte do Alasca se havia separado do continente e havia se tornado uma ilha flutuante.
Naquela ilha havia pessoas de diferentes países que estavam participando de algum evento internacional quando a separação aconteceu. Algumas famílias da área estavam lá em suas casas. Além disso, um grupo de artistas itinerantes de circo também estava lá. A ilha era capaz de fornecer toda a comida, água e abrigo necessários para que aquele grupo diversificado pudesse viver sem muitas preocupações materiais. O romance, então, tomava outra direção. Deixe-me, contudo, tomar essa situação e imaginar as relações sociais que começariam a ser estabelecidas naquele novo pequeno grupo humano.
Suponho que todos os habitantes daquela nova ilha seriam bons católicos, adversos aos erros da Revolução.
Em uma situação como essa, na qual quase todos os vínculos anteriores tinham sido quebrados e nenhuma obediência era devida à autoridade oficial, o que aconteceria? Qual seria o desenvolvimento orgânico de uma nova sociedade em que cada pessoa estivesse livre para fazer o que desejasse para cumprir seu dever?
Algumas pessoas gostam de começar a trabalhar de madrugada, acima Outros preferem contemplar problemas à noite, abaixo
Dois homens observando a lua, David Caspar |
Em algumas coisas, esse grupo de diferentes pessoas teria afinidades, produzindo simpatias; mas como cada uma teria sua própria personalidade, muito diferente das outras, elas também teriam diferenças marcantes, produzindo antipatias. Sendo bons católicos, eles tentariam fazer o que a caridade manda em tais condições, isto é, estabelecer relações cordiais entre si. No entanto, devido a seus diferentes defeitos e qualidades, bem como a seus diferentes hábitos e costumes, algumas fricções inevitavelmente surgiriam.
Um exemplo: uma pessoa gosta de estudar à noite e, portanto, dormir mais tarde pela manhã. Ela sente uma maior liberdade mental para resolver problemas intelectuais difíceis à noite. Outra, no entanto, gosta de começar a trabalhar de madrugada porque se sente inspirada pelo despertar da natureza, é uma alegria para ele. Vamos imaginar que ambas as pessoas tenham de trabalhar juntas por algum motivo. Como bons companheiros católicos, aqueles homens se esforçariam para adaptar-se um ao outro. Durante um mês, ambos acordariam cedo, no mês seguinte eles acordariam mais tarde.
Mas é inevitável que a pessoa que está fazendo o oposto de sua inclinação natural tenha alguns pensamentos negativos: “Por causa desse homem eu tenho uma dor de cabeça, já que sempre me vem uma quando tenho de acordar cedo. Por que devo suportar isso? Só para que ele possa acordar de madrugada, o que parece absolutamente sem sentido para mim. Pior ainda: agora eu tenho que aguentar isso por um mês inteiro para agradá-lo.” Então chega a sua vez de dormir até mais tarde, e é o outro que reclama. É inevitável que essas coisas causem fricções e dificuldades.
Existem inúmeras coisas como essas que fazem parte das relações humanas diárias. No entanto, se as pessoas tiverem uma certa medida de virtude, acabarão se acostumando ao modo de ser do outro. Elas encontram uma maneira de viver juntas que é suportável para ambas. Daí brota uma relação que – por favor, note – é artificial. Isso propicia um acordo resultante de muitos atritos e dificuldades que foram resolvidos. É uma adaptação de personalidades que é feita quando a virtude católica está presente. Se as pessoas não têm virtude, há todos os tipos de inimizade que podem levar até a violência ou mesmo o assassinato. Essa adaptação é o primeiro grau de um bom relacionamento.
Depois de terem vivido assim por um tempo, os dois homens percebem que as qualidades do outro são mais significativas do que os defeitos. Isso leva cada um a analisar e admirar as qualidades do outro, o que gera benevolência. É o segundo grau da convivência.
Depois que essa boa vontade nasce, vem o hábito de estar com o outro e desfrutar de sua companhia. Este hábito de relacionamento torna-se uma segunda natureza, e um forte laço de amizade. Imagine este processo orgânico sendo repetido entre todos os habitantes daquela ilha. O vínculo que os uniria seria uma das coisas mais agradáveis que possa acontecer na sociedade.
Se numa manhã aquela pequena ilha de alguma forma se encontrasse de volta unida ao território do Alasca, as pessoas que desenvolveram essa relação forte sentiriam que se tornaram diferentes dos outros habitantes do Alasca. Eles não teriam com os outros o forte laço de amizade que eles formaram com seus companheiros de ilha. Eles teriam que se reinserir na vida do Alasca; mas nesse processo, eles fariam o melhor possível para permanecerem juntos, para se reunir o maior número de vezes possível para não perderem aquela amizade especial.
Essa suposição nos permite ver como se forma um relacionamento orgânico, com todos trabalhando em meio de dificuldades e fazendo adaptações que os levam sob a inspiração da caridade católica, a refrear sua espontaneidade em certas situações.
Adaptando-se aos defeitos dos outros, desenvolvendo o espírito de boa vontade de um para com o outro e, depois, formando o hábito do prazer do relacionamento, essas são as três fases do convivium, orgânico ou convivência.
Em que pontos é orgânico esse processo? É orgânico quando age de acordo com a natureza das coisas; mas somente de acordo com a natureza correta, não com a natureza decadente corrompida pelo pecado original. Agindo com retidão, um homem pode corrigir os seus próprios defeitos da natureza e ajudar os outros a se corrigirem.
Os defeitos da natureza normalmente se repelem. Mas a condição humana exige que o homem viva na sociedade. Desde que ele tenha de estar relacionado com os outros, ou esta relação se torna um inferno ou exige que ele se controle e se adapte aos outros. Mesmo que inicialmente seja uma situação artificial, nossa natureza depois do pecado original requer que ajamos dessa maneira.
Para sermos retos, temos de conquistar e domar a natureza decadente e distorcida que existe em cada um de nós. O processo é orgânico porque segue a natureza correta. Se fizermos isso, o que nasce é a amizade e o desejo de estar juntos, que constituem a perfeição do relacionamento humano.
Postado em 17 de abril de 2019
| Prof. Plinio |
Sociedade Orgânica foi um tema caro ao falecido Prof. Plinio Corrêa de Oliveira. Ele abordou este tema em inúmeras ocasiões durante a sua vida - às vezes em palestras para a formação de seus discípulos, às vezes em reuniões com amigos que se reuniram para estudar os aspectos sociais e história da cristandade, às vezes apenas de passagem.
Atila S. Guimarães selecionou trechos dessas palestras e conversas a partir das transcrições das fitas e de suas anotações pessoais. Ele traduziu e adaptou-os em artigos para o site da TIA. Nestes textos, a fidelidade às idéias e palavras originais é mantida o máximo possível.
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