Algo que os livros de história não nos contam - às vezes, apenas algumas referências incompletas -- é a exigência que os medievais faziam dos comerciantes em melhorar cada vez mais a qualidade de suas mercadorias.
Vemos esta tendência, por exemplo, na procura e na produção de tecidos feitos no norte da Itália, que foram aumentando de modo gradual em qualidade e excelência. Também encontramos algumas pessoas na Suíça e na Alemanha, ao longo das fronteiras do Reno, que tinham o desejo sincero de ter mercadorias melhores, a fim de tornar suas vidas mais civilizadas, cultas e elevadas.
Este desejo foi parcialmente encorajado pelos senhores feudais que costumavam fornecer o bom exemplo de um estilo de vida nobre e digno. Tal tendência não foi principalmente um crescimento do comércio, mas um crescimento espiritual. Tratava-se de um élan para o mais perfeito, irmã gêmea da perfeição religiosa e intelectual. O desejo por melhores mercadorias fazia parte desse conjunto, pois tudo crescia junto.
Acima, a Abadia Beneditina de Mont Saint Michel, França; Abaixo, a opulenta biblioteca da Abadia de Kremsmunster, Áustria, está a serviço dos monges
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Qual foi a base para este élan? Foi o caráter sagrado e nobre da civilização cristã. A maior ordem religiosa da Idade Média foi a Ordem beneditina, cujo conceito de pobreza era diferente das demais. Os beneditinos dizem: “Somos uma Ordem rica de monges pobres.” Ou seja, embora seus mosteiros sejam ricos, os monges não têm um estilo de vida opulento. Eles recebem o suficiente para viver com dignidade.
Esta não é a posição franciscana, cujos monges sob o padrão da pobreza, renunciam todas as coisas materiais. Em vez disso, o conceito beneditino de pobreza é que o monge não tenha nada, ninguém governe e obedece a tudo - mas recebe o suficiente para viver decentemente. Portanto, sua posição é a de um monge pobre vivendo em um mosteiro rico.
Essa noção de ter coisas ricas para a glória de Deus e a grandeza de sua Ordem levou os beneditinos a construir lindas abadias e igrejas. Desse modo, sua influência encorajou a Idade Média a ter um desejo sempre crescente de perfeição e uma civilização superior.
O nobre foi talvez o primeiro subproduto social dessa mentalidade beneditina. O nobre era um homem que tinha a obrigação de dar seu sangue pela defesa de seu povo - chamado de impôt du sang [imposto do sangue]. Além disso, ele governava o povo e administrava justiça a eles com todos os deveres e problemas que tais encargos envolvem.
Assim, era justo que ele fosse recompensado com um grau proporcional de refinamento e riqueza ao seu redor. Novamente, semelhante aos monges, essa opulência não era principalmente para seu prazer pessoal, mas para elevar o papel público que lhe cabia e para ajustar sua dignidade correlata.
É preciso dizer isso para explicar o movimento ascendente da Idade Média. Se toda a sociedade tem um forte desejo por coisas nobres, isso por si só obriga suas elites a ascenderem em perfeição. Por exemplo, mesmo que a Família Real inglesa de hoje não deseje tudo o que representa, é obrigada pelo menos parecer que sim, a fim de cumprir as expectativas que o inglês médio ainda tem dessas coisas nobres. Se a realeza não mantivesse esse tom, ela perderia tudo.
Essas mesmas expectativas existiam em relação aos senhores feudais, com a diferença de que naquele tempo tanto os senhores quanto o povo desejavam avançar juntos rumo a uma qualidade de vida cada vez melhor.
A dicotomia entre a vida no campo e na cidade
Uma pergunta interessante a se levantar é que a vida na cidade, muitas vezes, pode parecer mais excelente do que a vida rural, pois é isenta de muitos aspectos prosaicos da vida no campo, convidando a uma vida mais civilizada. Possui um potencial de excelência, portanto, aquilo que falta na vida do campo. Esta afirmação está certa ou errada?
Rothenburg impressiona o visitante com seu charme, tranquilidade e ordem |
A resposta é matizada. Por causa da deterioração geral do espírito sacral e da admiração pela nobreza que estava presente quando as cidades nasceram, elas não foram marcadas com idêntico e vigoroso espírito ascendente que marcou a vida rural. Por isso, é difícil imaginar como seria a vida urbana se o espírito sacral e a admiração pela nobreza estivessem presentes.
Rothenburg tem esse espírito sacral. Não tem muito, mas algo de sacral está presente. No entanto, esse espírito estava mais presente no feudo medieval. Tentarei explicar. Rothenburg surpreende o homem moderno ao ver uma cidade tão recolhida, tranquila e ordenada. Ele sente uma grande paz de espírito quando está dentro dessa ordem.
No entanto, se um crítico exigente examinasse Rothenburg, diria que lhe falta o sentido do maravilhoso. Existe uma ordem muito boa que está de acordo com a doutrina católica, mas é voltada para si mesma. Não se sente nela uma vida voltada para o céu. É uma vida voltada para o divertimento.
No feudo era diferente.
Ouro Preto: cidade de muitas igrejas, mas centro de revoluções |
As cidades existem como parte do Direito Natural. Elas sempre existiram. Mas as cidades medievais -- das quais estou falando - nasceram ou se desenvolveram sem o élan de sacralidade e nobreza que caracterizou o nascimento do feudalismo. Não estou criticando as cidades em si, mas sim analisando esse aspecto particular das cidades medievais.
A solução para este problema não é simplesmente construir muitas igrejas, conventos e mosteiros em uma cidade. No Brasil temos cidades com um número considerável de igrejas, como Ouro Preto em Minas Gerais. No entanto, foi precisamente essa cidade que deu origem ao movimento maçônico que clamava pela separação entre a Igreja e o Estado. Ouro Preto, centro artístico do Estado de Minas Gerais com suas igrejas barrocas decoradas com ouro e esculturas, também foi o foco da revolta republicana que incendiou o país para abolir o Império Brasileiro.
Como deve ser uma cidade sacral?
Podemos imaginar uma cidade que tivesse esse élan para o sacral? Acho difícil discutir isso em teoria, porque uma cidade orgânica não pode ser planejada. Uma semente é plantada e uma cidade germina a partir dela. Então, deixe-me dar um exemplo de uma cidade orgânica que conheci, para ver se encontramos elementos para uma solução.
Na cidade de São Paulo onde fui criado, antes da revolução industrial mudá-la completamente, havia muitos fazendeiros ricos que passavam parte do tempo na cidade com suas famílias. Para tanto, construíram mansões esplêndidas, quase palácios. Mas por um instinto bem brasileiro, em vez de colocar todas essas mansões em um bairro exclusivo para ricos, eles construíam suas belas casas em áreas com muitas casas simples ao redor. Foi assim que se estabeleceu o bairro dos Campos Elíseos.
De tal modo que ao lado de um casarão elegante se encontrava a casa simples de uma costureira, que trabalhava no seu lar cuidando dos filhos, enquanto o marido trabalhava em outro lugar próximo. Eles constituíam um casal de simples trabalhadores. Todo o bairro era formado por algumas casas grandes de famílias ricas esparsas entre as casas dos pobres.
Uma casa de boa família em Campos Elíseos
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Em tal situação, os ricos mostraram uma grande bondade para com os trabalhadores que viviam ao seu redor. Se um desses trabalhadores precisasse de alguma coisa, naturalmente pediria ao vizinho rico. Qualquer tragédia ou coisa ruim que acontecesse aos membros dessas famílias trabalhadoras seria logo conhecida pelas boas famílias, que ofereceriam sua ajuda.
Por exemplo, a matrona da casa grande mandava a filha com algum remédio especial ou um presente para o vizinho doente. Outras vezes, a dona da casa pedia ao seu médico que visitasse o filho doente de uma família humilde. Ainda, outras vezes, era o chefe da família abastada que oferecia algum trabalho extra para um membro da família de um trabalhador, pois sabia que a família dele precisava de dinheiro.
Posteriormente, a mãe da família que recebeu a ajuda ia visitar a senhora para lhe agradecer. Eles conversavam amigavelmente por um tempo num ambiente repleto de respeito e bondade, e depois cada uma voltava alegremente para o seu próprio mundo.
Boas famílias como essas se tornaram o foco de admiração do bairro, uma espécie de mundo maravilhoso para as famílias trabalhadoras que vivem ao seu redor. Quando os filhos e filhas das grandes famílias chegavam em casa em seus belos carros e subiam as escadas de mármore que levavam à porta da frente, os membros da família da classe trabalhadora estavam olhando pelas janelas para admirá-los.
Em seguida, indo para a sala e parando na varanda, o filho do proprietário cumprimentava pelo nome alguns daqueles trabalhadores: “Como vai, José? Sua pequena Isabel está melhor do resfriado?” Esses trabalhadores nunca esqueceriam essas pequenas cortesias. Pelo resto da vida não hesitavam em saudar - com a mais alta consideração -- os membros da família das classes altas quando os encontrassem nas ruas, com a certeza de que seriam sempre tratados com bondade e respeito.
Esse exemplo da pequena São Paulo que conheci quando menino [o Prof. Plinio nasceu em 1908] pode dar uma ideia de como um povo sacral pode se voltar para a admiração da nobreza. Afirmo que as pessoas simples têm uma tendência natural para admirar a nobreza. Só quando são envenenados pela Revolução é que se revoltam.
A partir dessa descrição, também se pode perceber que as cidades não devem ser divididas em bairros exclusivamente ricos ou pobres. Isso abre caminho para a luta de classes, em vez de harmonia e amabilidade naturais entre as classes
Postado em 8 de fevereiro de 2021
| Prof. Plinio |
Sociedade Orgânica foi um tema caro ao falecido Prof. Plinio Corrêa de Oliveira. Ele abordou este tema em inúmeras ocasiões durante a sua vida - às vezes em palestras para a formação de seus discípulos, às vezes em reuniões com amigos que se reuniram para estudar os aspectos sociais e história da cristandade, às vezes apenas de passagem.
Atila S. Guimarães selecionou trechos dessas palestras e conversas a partir das transcrições das fitas e de suas anotações pessoais. Ele traduziu e adaptou-os em artigos para o site da TIA. Nestes textos, a fidelidade às idéias e palavras originais é mantida o máximo possível.
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