Os habitantes do Vale do Roncal, no norte da Espanha, sempre corresponderam à noblesse oblige, a ideia de que a nobreza vem com obrigações. (1) Eles estiveram sempre presentes para defender a Fé ou a Coroa. Por esta razão, o povo do Roncal recebeu privilégios especiais, que zelosamente manteve ao longo do tempo.
É curioso que, embora seus atos de heroísmo mais distantes estejam envoltos na névoa do mito e da lenda, os privilégios derivados desses fatos tenham sido cuidadosamente conservados até os nossos dias, algo bastante raro nos tempos modernos.
Dois privilégios que ainda hoje existem lá têm origem nas batalhas heroicas travadas pelos homens da região. O primeiro privilégio é que todas as pessoas do Roncal são nobres - cavaleiros, fidalgos e infantes -- com direito ao uso do escudo do Vale do Roncal. Ainda hoje, para se tornar cavaleiro armado em uma ordem militar, basta um homem provar que seu sobrenome é roncalês para atestar sua nobreza.
Jovens do Vale do Roncal, todos nobres, em trajes de aldeia
Aldeia de Roncal viva com charme e tradições ancestrais |
O segundo privilégio é o direito perpétuo concedido aos pastores do Roncal de pastorear seus rebanhos nas Bardenas Reales, um enorme território semidesértico à margem esquerda do rio Aragão que era propriedade da Coroa.
Quando a neve cobre as montanhas nos primeiros dias de outubro, uma coluna interminável de ovelhas do Roncal entra em Bardenas por um desfiladeiro nesta migração antiga e mais famosa:
À Bardena do Rei,
Já vêm os roncaleses,
comer miolo de pão com banha,
ao menos por sete meses.
Ficam ali até a primavera, quando o Vale volta a se alegrar com o som dos sininhos de cobre de milhares de ovelhas, enquanto a jota canta:
Já vem a primavera,
já ressoam os címbalos,
já voltam os pastorinhos,
Com seus lenços ao ar.
Todos os habitantes se tornaram nobres
Qual é a origem histórica desses privilégios notáveis? O primeiro privilégio, ou fuero, torna cada um dos roncaleses nobres, um status que foi estendido a seus filhos e descendentes. Podemos ler a sua confirmação em um documento assinado pelo Rei Don Juan e pela Rainha Catarina de Navarra:
“E já nos tempos do Rei Dom Fortuno Garcia, os roncaleses mataram e derrotaram o Rei de Córdoba chamado Abderraman, e perseguiram seu exército em um lugar chamado Olast. Esse rei havia matado o Rei Ordoño das Astúrias e passou pelos Pirineus para a cidade de Toulouse, destruindo ao longo do caminho os fiéis cristãos e a Fé Católica.
“Os roncaleses eram conhecidos pela bravura e vitórias em defesa da Fé, e sempre estiveram a serviço do Rei Sancho Garcia [filho de D. Fortuno], junto de outros católicos valorosos que defenderam acampamentos nas montanhas, e, de lá, dilataram a Fé Católica por toda a Espanha.
“Por isso, esses Reis nossos predecessores, cada qual em seu tempo, reconheceram e declararam que os roncaleses eram, então, agora e sempre, homens livres e nobres, e que deveriam sempre gozar das liberdades, honras e preeminências dos nobres.”
No ano do Senhor de 786, o Emir Abderraman, o grande Rei de Córdoba, junto com seu exército mouro, passou os Pirineus pelas planícies de Aragão. Fugitivos horrorizados chegaram ao Vale do Roncal descrevendo as crueldades e massacres causados por aqueles mouros africanos indomáveis durante sua passagem. As forças de Abderraman foram até Toulouse, dentro da Gália, numa expedição sangrenta.
A Ponte dos Roncaleses em Yesa |
Em seu retorno, o Rei Mouro decidiu passar pelas gargantas do Vale do Roncal para punir os seus habitantes que até então haviam destruído todas as expedições muçulmanas. As hordas árabes desceram das Marcas de França arrasando tudo.
Muito menos numerosos e pouco poder, os roncaleses se reuniram na solidão das montanhas enquanto suas aldeias eram saqueadas e queimadas. Para os homens, a morte parecia certa; para as mulheres, a escravidão.
Decidiram eles se lançarem à batalha, buscando uma morte certa, mas gloriosa. Eles desceram das montanhas e atacaram os infiéis em grandes campos abertos perto de Burgui, o próprio portal de Roncal, às margens do rio Esca, no lugar chamado Olast, ou campos de Burgui. Entraram em um combate furioso com o inimigo muito superior em número e armamentos com a resolução de morrerem bravamente pela Fé.
Mas Deus desejava ajudar o valente povo do Roncal. Pouco depois do início da luta, como que por milagre, o rei de Navarra, Dom Fortuno Garcia chegou com algumas corajosas colunas de guerreiros para ajudá-los. Sabendo que os mouros estavam voltando, Dom Fortuno decidiu fazer uma escaramuça punitiva. Sua chegada coincidiu com o ataque desesperado dos roncaleses.
O Escudo do Vale do Roncal |
Este encontro providencial suscitou grande júbilo entre os cristãos e igual espanto entre os inimigos, que desconheciam o número de forças que estavam contra eles. Os mouros precipitaram-se desordenadamente para sair do vale. Mas agora os homens do Roncal estavam em vantagem.
Eles conheciam todos os desfiladeiros e passagens da Sierra de Leyre, por onde serpenteia seu famoso vale. Isso permitiu que eles caíssem sobre o centro do exército fugitivo em um ataque surpresa. Mais tarde, a vanguarda do exército do Roncal alcançou a aldeia de Yesa nas fronteiras de Aragão, e entrando nos aposentos reais árabes fizeram prisioneiro o rei dos mouros.
Enquanto os homens deliberavam sobre uma ponte o destino do emir Abderraman, as mulheres se aproximaram do rei mouro e o decapitaram. Portanto, em um quarto esquerdo do escudo de Roncal está uma ponte e, sobre ela, a cabeça de um Rei mouro. Todos os roncaleses carregam este escudo como um sinal de sua nobreza. O rio Aragão passa por Yesa sob as ruínas de uma ponte conhecida como Ponte dos Roncaleses.
As Bardenas Reais
Outra grande e histórica vitória foi a que conquistou para os pastores do Roncal o direito perpétuo de invernar seus rebanhos nas Bardenas Reais. No ano de 821, uma forte coluna árabe avançou contra fortificações nas montanhas de Navarra. O rei D. Sancho Garcia, filho de D. Fortuno, foi ao seu encontro na região semidesértica de Bardenas. Tanto os homens com o Rei quanto sua vanguarda eram de roncaleses que haviam conquistado este posto de honra na batalha de Olast.
Uma longa coluna de cabeças de ovelhas do Vale do Roncal pastando no inverno nas Bardenas Reais |
Os dois exércitos se encontraram em Ocharren, uma pequena vila no território. A vitória dos cristãos e a dispersão dos mouros foram tão completas que, naquele mesmo lugar, D. Sancho Garcia concedeu ao povo do Roncal o uso perpétuo daquela terra seca, mas fértil, boa apenas para pastagem.
Por mais de 1.000 anos a coluna branca de rebanhos com o alegre tilintar de seus pequenos sinos percorre para cima e para baixo a Trilha Real, que liga as pastagens do Vale do Roncal às Bardenas.
Outros privilégios do Vale do Roncal, como a isenção do serviço militar fora de suas fronteiras e o livre comércio com a França, não existem mais hoje, embora os roncaleses tenham sido os últimos a perdê-los. A antiga liberdade de costumes é reduzida hoje aos dias de Ernaz, ou Tributo das Três Vacas. (2)
Uma visão geral do Vale do Roncal |
O Vale do Roncal foi a última região a ser isenta do serviço militar regular. Em 1773, um decreto real do rei Carlos III estabeleceu que os nomes de roncaleses seriam sorteados para o alistamento militar na Navarra. O Conselho Real de Navarra queria submeter os roncaleses à mesma lei, mas o povo se rebelou, recusando-se a renunciar os seus privilégios. O decreto foi então revogado.
Em contrapartida a este direito, os roncaleses assumiram a responsabilidade de estar sempre dispostos a proteger as suas fronteiras a qualquer momento em defesa do Rei e ao comando do seu prefeito, o “capitão-de-guerra” do Vale. Para isso suas armas eram mantidas em suas casas e todos os anos realizavam uma “exibição de armas” e inspeção militar feita pelo capitão-de-guerra.
Sempre que o Rei declarasse uma guerra, os roncaleses a tornavam também sua, manifestando assim a autonomia do Vale. A cada ano, durante a procissão da Virgem do Castelo, sua padroeira, através de Roncal, quando o cortejo chega a um local que contempla todo o vale, a milícia especial que guarda a imagem se detém e dispara seus fuzis, e o porta-bandeira agita o pavilhão sobre o Vale como um símbolo do domínio dos roncaleses sobre suas terras.
1. O Vale Roncal está situado no alto dos Pirenéus, na fronteira entre a França e a província Espanhola de Huesca. Possui um caráter marcante e está repleto de tradições antigas, comida deliciosa e uma natureza intocada. Percorrido de norte a sul pelo rio Esca, sete aldeias de reconhecida beleza constituem este vale, cujos principais recursos continuam a ser a silvicultura e a pecuária.
2. Nesta cerimônia anual, o prefeito do Vale do Roncal recebe três vacas do prefeito do Vale do Vareto, na França. Isso para comemorar um acordo que remonta a 1375, encerrando as hostilidades entre as pessoas dos dois vales e concedendo certos privilégios comerciais.
Continua
Baseado e traduzido por Rafael Gambra, El Valle de Roncal,
Estela, Navarra: Graficas Lizarra, 1987, pp. 3-5
Postado em 15 de fevereiro de 2021
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