O problema de fundir o núcleo originário das famílias que constituíam uma cidade ou um Estado com os plebeus de diversas localidades, que mais tarde ali passaram a viver, encontrou solução em algumas das cidades livres do Império Romano Alemão, como Flandres e Veneza.
Cidades onde as famílias originais assimilaram estrangeiros: acima, Bruges em Flanders, e abaixo, Veneza
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Essas primeiras famílias fundaram as cidades e depois dirigiram o seu comércio. Eles eram descendentes de fazendeiros da região que haviam se mudado para a cidade.
Quando estrangeiros de diferentes províncias ou países também vieram morar na cidade, eles foram aceitos, pois a presença deles ajudou a incrementar o comércio e a aumentar a clientela, mas foram mantidos fora do círculo interno de poder. Esta é a origem das repúblicas aristocráticas como Veneza. Elas eram aristocracias nascidas do comércio.
Veneza era dirigida por uma aristocracia cujas famílias estavam registradas na Libra d'Oro, no Livro de Ouro, a lista oficial das 1.000 famílias venezianas que constituíam a nobreza, que governavam a cidade. Veneza não tinha um rei, mas um doge, que era o magistrado-chefe eleito vitaliciamente pelas famílias originais da cidade-estado.
Essas famílias tinham uma longa história de lutas políticas nas quais muitas vezes pediam o apoio dos plebeus. Dessa forma, os plebeus desempenharam um papel decisivo sobre quem governaria a cidade. Acho que o plebeu deve ter uma influência por meios naturais e orgânicos, como suas universidades e guildas (corporações de ofício).
Mas quando sua influência não era orgânica, como essa intromissão artificial no jogo político, abria uma porta não apenas para o plebeu exercer uma interferência indevida, mas também para que os inimigos da cristandade fizessem o mesmo. Normalmente, a Revolução se infiltra na sociedade católica pelas portas das influências plebeias artificiais.
Harmonia entre a cidade e o campo
Como evitar esse problema? Uma solução seria que as famílias originais vivessem dentro das cidades, mas mantivessem contato frequente com suas fazendas fora dos limites da cidade. Quem tivesse meios poderia ter uma casa na cidade e outra no campo, morando em uma ou outra de acordo com as necessidades específicas das estações. Na hora do plantio ou da colheita, ou da venda do gado, por exemplo, a família ficava na fazenda, mas mantinha um pied-à-terre na cidade para desempenhar um papel decisivo no que ali acontecesse.
Tannay na Borgonha: proporção entre a vida no campo e na cidade |
O ideal é que a cidade nunca se torne tão grande cujos moradores tenham a sensação de estar totalmente afastados do campo. Seu tamanho deve permitir que a cidade mantenha a continuidade com o campo, de forma que qualquer pessoa na cidade tenha fácil acesso aos campos. Um pouco da tranquilidade pastoril, do modo normal, estável e sedentário de viver no campo deve penetrar na vida da cidade.
A cidade tem que ser proporcional ao homem. Não vemos isso nas cidades de hoje. Um homem se sente dissolvido no anonimato da cidade moderna. Se uma cidade ultrapassa certos limites, o homem não pode ter o que precisa. A dificuldade não é provar que a cidade moderna é opressora, mas encontrar seus limites corretos.
Acredito que o limite deve ser buscado com base no instinto de sociabilidade. O homem tem uma tendência natural de estabelecer relações com coisas e pessoas que conhece. Ele quer ser conhecido no lugar onde mora, assim como quer saber quem e o que existe onde mora. Ele quer ter relações, mais próximas ou mais distantes, conforme sua conveniência, com tudo o que o rodeia.
Quando esse princípio é violado, ele passa a se sentir um estranho no lugar onde mora e a vivenciar uma espécie de mal-estar. Que um homem deva estabelecer relações naturais com as pessoas e coisas ao seu redor constitui parte do princípio de sociabilidade. Esta é uma definição parcial dos limites do instinto de sociabilidade.
A necessidade do homem de saber e ser conhecido encontra-se naturalmente na Piazza Grande de Cortona |
Um homem sente necessidade de conhecer os arredores da cidade para que possa vê-la em perspectiva, para avaliar o conjunto que constitui o lugar onde vive. Quando uma cidade tem proporções humanas, o indivíduo aprende sobre sua cidade, e então quer saber o que está além dela, em seus arredores e nos campos anexos.
Seu imperativo em saber tudo isso vem do desejo de unidade que o homem tem com o universo criado. É um resquício de sua primeira missão de ser o rei da criação. Por estar estabelecido em determinado lugar, ele precisa conhecê-lo bem. Para ele, ter esse conhecimento e relação com a cidade é vital para seu pleno desenvolvimento.
A tendência de ter sítios e fazendas nos arredores das cidades corresponde a essa necessidade de conhecer a cidade inteira até seus limites e ter relações com ela. É também uma forma de conciliar a vida urbana com à do campo, e não perder a perspectiva delas.
Algumas pessoas que têm um instinto de sociabilidade mais aguçado precisam conhecer não apenas os arredores da cidade, mas também a região maior em que a cidade se acha inserida. Por meio dessas pessoas, a vida regional influencia os assuntos urbanos.
Acho que a cidade impregnada de vida no campo dessas diferentes formas torna um lugar harmônico onde um homem possa viver bem. A vida no campo deve ser influenciada pela cidade, que também representa harmonia. A cidade oferece ao campo a contribuição da civilização, enquanto o campo dá à cidade a contribuição da proporção e do equilíbrio.
No tipo de grande cidade moderna que temos hoje, não há relação com o campo. É impossível que haja harmonia na vida urbana.
Uma forma orgânica para os plebeus entrarem nas classes altas
Se aplicarmos este princípio ao papel das famílias nas cidades, veremos que essas famílias originais deveriam manter uma relação contínua com suas fazendas e propriedades rurais. Certamente também deveriam estimular o crescimento orgânico de suas famílias e que estas mantivessem fortes relações entre seus membros, a fim de que cada família fizesse a história com a marca de sua personalidade e influência que a caracterizasse.
É através da sua dedicação à Igreja que os plebeus revelam as suas melhores qualidades. Acima, uma cerimônia religiosa na Praça de São Marcos |
Mas, ao mesmo tempo, é necessário que recebam aqueles que vêm de outros lugares. Esses estranhos devem ser admitidos no seu meio, na medida em que deem provas de extraordinária capacidade ou dedicação ao bem comum.
Essas qualidades muitas vezes são reveladas quando uma pessoa mostra um grande amor pela Igreja Católica. Ao demonstrar esse amor e interesse pelo bem-estar da verdadeira religião, ele está necessariamente interessado no bem-estar da moral e, portanto, no bem comum de toda a sociedade.
Era comum no passado, mediante a pregação da Igreja, que almas dedicadas e nobres, com grande espírito de sacrifício, aparecessem entre os plebeus. Essas almas devem ter uma porta aberta para entrar na nobreza. Desta forma, os plebeus ascenderiam naturalmente às classes superiores. É assim que as famílias originárias deveriam receber o melhor dos plebeus com a moral mais elevada. É também uma forma de renovar o sangue daquelas primeiras famílias sem alterar suas características principais.
Por sua vez, aquelas famílias numerosas, ao serem tocadas pela palavra de Cristo, pelo ensino da Igreja Católica, pela graça que Nosso Senhor Jesus Cristo conquistou para nós no alto da Cruz, dariam à luz uma casa nobre, uma dinastia. Esta dinastia ou dinastias seriam para uma extensa região ou para um país o que as famílias numerosas fossem para a cidade.
Postado em 8 de março de 2021
| Prof. Plinio |
Sociedade Orgânica foi um tema caro ao falecido Prof. Plinio Corrêa de Oliveira. Ele abordou este tema em inúmeras ocasiões durante a sua vida - às vezes em palestras para a formação de seus discípulos, às vezes em reuniões com amigos que se reuniram para estudar os aspectos sociais e história da cristandade, às vezes apenas de passagem.
Atila S. Guimarães selecionou trechos dessas palestras e conversas a partir das transcrições das fitas e de suas anotações pessoais. Ele traduziu e adaptou-os em artigos para o site da TIA. Nestes textos, a fidelidade às idéias e palavras originais é mantida o máximo possível.
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