Em países como os Estados Unidos, existe uma federação de estados subdividida em condados e cidades aproximadamente semelhantes à distribuição das unidades políticas no feudalismo medieval. Essas unidades medievais eram governadas pela grande e média nobreza, bem como pela pequena nobreza, muitas vezes municipal.
A nação era representada por todo o organismo político abrangendo toda a gama de autoridades - do rei, no topo da pirâmide social, ao barão da cidade. O Estado foi progressivamente dividido em unidades menores inter-relacionadas.
No feudalismo havia muitas sociedades intermediárias entre o Estado e o indivíduo. Essas instituições não estavam necessariamente vinculadas ao Estado nem restritas ao domínio de um indivíduo. Em muitos aspectos, elas tinham seu próprio poder autônomo de governo.
Os relojoeiros medievais alcançaram uma grande perfeição. Do canto superior esquerdo, no sentido horário, os relógios das cidades de Berna (Suíça), Paris, Praga e Estrasburgo (França) |
Considere, por exemplo, certas organizações de relojoeiros na Suíça. Uma família de relojoeiros estabelecia sua própria oficina. Gradualmente, ao longo de várias gerações, aquela oficina se tornava uma pequena indústria, empregando muitos trabalhadores para fazer vários trabalhos sob a direção de membros da família.
O mesmo processo ocorria em outras famílias de relojoeiros. Então, esse grupo de famílias normalmente desenvolvia um conjunto de leis para reger aquele negócio específico.
Este estatuto, nascido das necessidades dessa indústria e das relações entre os proprietários e seus empregados, regeria com propriedade a indústria relojoeira em uma área específica.
O estatuto dos relojoeiros era muito diferente do estatuto dos enólogos, dos encadernadores ou dos ourives, pois cada profissão tinha seu próprio desenvolvimento orgânico que daria origem a suas próprias leis.
O Estado medieval costumava reconhecer esse restrito poder legislativo das corporações. Cada código de lei específico se aplicava a apenas uma profissão em um determinado distrito ou cidade
Percebe-se que tais regras foram feitas para proteger e dar estabilidade a cada comércio e a quem nele trabalhava. É assim que a vida normal das corporações progredia no conjunto da sociedade. As corporações eram respeitadas e gozavam de grande autonomia
O 'homem ciclone'
Esse tipo de governo acomodava o homem comum das corporações, a quem beneficiava e ajudava. Mas eles não satisfazem um tipo de 'homens ciclone', o homem excepcional com um grande dinamismo e força de vontade. Esses homens têm capacidade e recursos para ser muito mais do que o homem comum.
A legislação orgânica das corporações tem a vantagem de favorecer a vida do homem médio em sua profissão. Mas levanta obstáculos para o homem excepcional, que aqui chamamos de 'homens ciclone'. Ele não se encaixa bem nos limites dessas leis.
O 'homem ciclone' é um presente ou um castigo de Deus? Depende. Se alguém der toda a liberdade possível ao 'homem ciclone', ele pode facilmente ser um flagelo de Deus. Considere o caso de Winston Churchill, que foi um homem excepcional. Certamente sua vontade enérgica desempenhou um papel importante em evitar que a Europa se tornasse nazista, o que foi muito bom.
No entanto, ele também desempenhou um papel importante na entrega de uma parte considerável da Europa ao comunismo, o que foi muito ruim. Assim, o mesmo homem que é digno de admiração em muitos aspectos pode-se tornar fonte de castigo em muitos outros.
Isso nos mostra que em uma sociedade bem constituída, deve haver um equilíbrio social e jurídico que permita a ascensão do 'homem ciclone', mas não sem certas restrições. Ele deve ser controlado por um mecanismo de freio social e legal que conterá seus lados ruins.
A sociedade liberal de hoje, que adora o “homem ciclone,” é constituída de modo a permitir ao homem ciclone um reinado quase livre para chegar ao topo. Este é um fenômeno caracteristicamente americano.
Corporações burguesas podres e revoltadas
Em sua primeira fase, as corporações eram saudáveis e usaram seus restritos poderes legislativos de forma equilibrada. O chefe da corporação se achava muito próximo de seus trabalhadores, ensinando-lhes o que fazer e controlando paternalmente seu trabalho.
Após essa fase, porém, os chefes assumiram cada vez mais para si um maior poder interno, isolaram o trabalhador e passaram a se preocupar excessivamente com a margem de lucro do seu negócio. Esta foi a primeira semente do capitalismo desenfreado que viria a seguir.
O dono ou mestre da oficina passou a se distanciar dos trabalhadores, buscando lucros exagerados |
O chefe da corporação começou a acumular dinheiro desproporcionalmente para si e se afastou do trabalhador como se ele fosse de uma classe social diferente. O diretor burguês, que era essencialmente tão plebeu como o operário (ambos eram homens do povo), passou a se fingir de nobre e a tentar arranjar o casamento da filha com o filho do barão ou do conde.
Essa atitude do empresário emergente criou um desequilíbrio dentro de duas classes sociais: o povo e a nobreza. Por um lado, produziu um compreensível descontentamento entre os operários das corporações e até uma revolta contra o chefe, na medida em que explorava e desprezava os operários, fingindo pertencer a uma classe social diferente.
Por outro lado, seu lucro desproporcional o tornava muito rico, mais rico do que o nobre regional, cuja modesta receita vinha de suas terras. Este extravio de riqueza introduziu instabilidade dentro da instituição da nobreza. Em vez de os valores morais serem o critério para fazer novos nobres, o dinheiro entrou em cena. Os nobres começaram a redorer leur blasons [reordenar seus escudos], expressão que significa dar uma filha em casamento ao filho de um rico burguês para enriquecer de ouro a casa nobre e ajudá-la a voltar ao antigo brilho.
Somando-se à instabilidade social, surgiu um novo poder econômico. A burguesia passou a oferecer dinheiro aos nobres para suas despesas extras como guerras, festas brilhantes ou simplesmente para acompanhar as novas modas. No começo era dinheiro fácil com juros baixos. Depois de um tempo, porém, os juros aumentaram, tornando os nobres cada vez mais dependentes dos burgueses.
Um câncer entrou na vida das corporações e se espalhou pela nobreza. Os trabalhadores da corporação ficaram revoltados com a nova atitude da burguesia; a nobreza tornou-se venal e cada vez mais emaranhada em dívidas financeiras.
Uma mudança de mentalidade nas corporações
Esta é a raiz de um capitalismo desenfreado, que poderia facilmente ser responsabilizado por tudo. Há algo mais, entretanto, que devemos considerar. É o papel da mudança de mentalidades e princípios dentro das corporações.
Acima, Henrique IV teve que fingir uma conversão para se tornar Rei; abaixo, a decapitação de Luís XVI
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Quando se estuda como as corporações evoluíram e o exercício do poder dentro delas, vê-se que seus chefes cometeram os mesmos erros que os reis absolutos em seus reinos. Um vento maléfico varreu a sociedade, mudando as mentalidades tanto no topo quanto na base. A natureza dessa mudança não foi suficientemente estudada, mas na raiz de uma decadência psicológica das instituições há sempre uma decadência religiosa.
Um espírito reto é o que forma uma economia saudável, e a decadência desse espírito produz uma economia ruim. Visto que o verdadeiro espírito reto vem apenas da verdadeira religião, segue-se que a religião é a causa básica que move os homens em uma direção ou outra.
Quando a dinastia Valois terminou no século 16, um candidato protestante apareceu para ocupar o trono católico da França, o huguenote Henrique da Navarra, que se tornou Henrique IV da França. Naquela época, o povo de Paris, ou seja, os operários organizados em corporações, era a força mais forte na oposição aos protestantes. Henrique IV teve que fingir uma conversão para ascender ao trono, dada a força daquele povo dentro das corporações que representava a vida de Paris. Paralelo às corporações operárias estava o parlamento de Paris, que era a corporação da classe jurídica que detinha um enorme poder e apoiava a causa Católica.
Cerca de 200 anos depois, entretanto, a principal força impulsionadora da Revolução Francesa foi Paris, e em Paris, mais uma vez, o povo e o parlamento se organizaram.
O que teria acontecido nesses 200 anos para fazer com que o povo de Paris, outrora cidadela da monarquia católica, se tornasse a cidadela da revolução? Que mudança ocorreu nas mentalidades daquelas corporações que, na época de Henrique IV, haviam preservado o reino da França, mas 200 anos depois estavam destruindo a realeza? Isso é ainda mais difícil de entender, pois a Revolução Francesa destruiu a vida orgânica das corporações e do parlamento de Paris que existia antes. O que veio depois foram corporações esvaziadas de vida e controladas tiranicamente.
Aqui, então, está o problema apresentado em toda a sua clareza. Devemos ter isso em mente ao procurar uma solução, uma solução que ainda estou procurando.
Postado em 12 de abril de 2021
| Prof. Plinio |
Sociedade Orgânica foi um tema caro ao falecido Prof. Plinio Corrêa de Oliveira. Ele abordou este tema em inúmeras ocasiões durante a sua vida - às vezes em palestras para a formação de seus discípulos, às vezes em reuniões com amigos que se reuniram para estudar os aspectos sociais e história da cristandade, às vezes apenas de passagem.
Atila S. Guimarães selecionou trechos dessas palestras e conversas a partir das transcrições das fitas e de suas anotações pessoais. Ele traduziu e adaptou-os em artigos para o site da TIA. Nestes textos, a fidelidade às ideias e palavras originais é mantida o máximo possível.
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