Sociedade Orgânica
Lei Escrita Medieval - III
Dinamismo do Princípio Associativo e
o Salutar Direito de Resistir
As análises dos diferentes tipos de leis nos artigos anteriores (Parte I e Parte II) nos levam a estudar a vida dentro e fora do feudo, bem como a autoridade do senhor feudal, para que possamos entender adequadamente o direito feudal.
O princípio associativo foi extraordinariamente dinâmico na Idade Média. Isso deu origem ao estabelecimento de associações múltiplas, que foram chamadas de universidades. Não eram apenas universidades de estudo, como as que conhecemos hoje, compostas por um conjunto de escolas de ensino superior, mas a palavra universidade abrangia qualquer corporação, associação ou pessoa jurídica. (1)
Hoje, criamos uma associação quando vários indivíduos se reúnem, registram as atas da reunião e as inscreve no registro civil. Naquela época, uma associação era criada por ato do rei ou do senhor feudal, e por meio desse ato se constituía a pessoa jurídica.
Mas, como o princípio regente em todo o Direito Medieval era que as funções do Estado deveriam ser delegadas a particulares, assim que o rei ou senhor feudal constituísse uma universidade, ele delegaria parte de seu próprio poder político a esse organismo. Dessa forma, a universidade poderia fazer as leis para seus membros.
Assim, a maior parte da legislação trabalhista, que hoje é gerada pelo Estado, foi feita por particulares na Idade Média. As corporações ou universidades de profissionais comporiam a maioria das leis para seus próprios membros.
Temos aqui, então, outro tipo de lei, muito limitada, que regia pequenos grupos e era feita por autoridades menores. Esse foi outro tipo de fio legislativo que teceu a estrutura jurídica de uma nação medieval.
Como um indivíduo pode se defender do Estado?
Agora, consideremos outro ponto. Qual foi a defesa de um homem medieval contra o Estado?
Eu coloco a questão com um exemplo. Durante o século XVIII, em Portugal, o Marquês de Pombal, que era o equivalente a um Primeiro-Ministro do Rei D. José I, difundia as ideias do Iluminismo e estava a aniquilar a nobreza orgânica.
Com o objetivo de oprimir a nobreza, decidiu atacar a Casa do Marquês de Távora, cuja família era o elo intermediário entre a Família Real e a nobreza portuguesa. Os Távora ficavam perto da Casa dos Duques de Aveiro, que também era uma grande Casa.
Pombal inventou um assalto contra o Rei D. José I quando este passava incógnito numa carruagem por Lisboa, à noite, e acusou os Távora de cometerem aquele crime para matar o Rei e substituir a Casa Real pela Casa de Aveiro. Não havia evidências para a acusação; não obstante, ele prendeu toda a família, condenando a maioria deles à morte pelo crime de lesa-majestade.
Ele os executou, tomou posse de suas propriedades e destruiu seus palácios. A Casa dos Duques de Aveiro também sofreu uma grande perseguição sob a mesma acusação. O confessor dos Távora, Pe. Gabriel Malagrida, um jesuíta, foi queimado na fogueira e simultaneamente Pombal expulsou a Ordem dos Jesuítas de Portugal e confiscou as suas propriedades.
Agora pergunto: se um de nós fosse o Marquês de Távora e soubesse que um maçom, ministro iníquo, tramava para destruir a nossa família, a nossa história, as nossas tradições e todos aqueles privilégios acumulados ao longo dos séculos na nossa Casa, e ainda, que o objetivo final daquele ministro fosse de destruir o que restava da velha nobreza de Portugal, o que deveria ele ter feito? Que tipo de ação o chefe da família Távora deveria tomar?
Ele deveria ter fugido para viver como um mendigo em um país estrangeiro? Se ele fugisse, estaria implicitamente reconhecendo como verdadeiras as acusações contra ele. Ele deveria ter resistido? Como? Ele deveria ter levado seu caso aos tribunais? Mas na ditadura de Pombal, todos os tribunais lhe obedeciam cegamente.
Aqui temos o problema que desejo enfocar. No Direito Medieval existia uma forma de resistir a uma decisão injusta de um superior, fosse ele um Rei, um senhor feudal ou um ministro poderoso, o que já não existia nos Estados absolutistas do século 18.
Toda a sociedade medieval foi construída com base em contratos privados. Era por meio de um contrato que o rei ofereceria parte de seu patrimônio a um vassalo. Esse contrato definiria os direitos do rei e do vassalo. Com base nesse contrato, o nobre vassalo dividiria ainda mais o que havia recebido e transferia parte dele para seus inferiores por meio de contratos semelhantes. O mesmo procedimento seria seguido até os degraus inferiores da nobreza.
O rei e os senhores feudais tomariam ações semelhantes com cada cidade por meio de contratos. É comum encontrar cartas da época favorecendo esta ou aquela cidade. Às vezes, eles tornavam uma cidade autônoma por meio de um contrato.
Toda a sociedade foi formada por contratos que estabeleciam os direitos e deveres de cada uma das partes envolvidas, de alto a baixo.
Direito à resistência armada
Qual foi o resultado prático desta cadeia de contratos?
O rei, os vassalos, as cidades e todas as outras unidades políticas, cada um tinha seus próprios soldados e armas. Ou seja, dispunham de meios para garantir o cumprimento dos contratos em face das transgressões da outra parte. Assim, logicamente, quando uma das partes violasse os direitos e deveres estabelecidos em contrato, a outra parte ficaria isenta de suas obrigações.
Quando a violação das obrigações fosse cometida pelo inferior, ele seria considerado criminoso, e esse crime doloso foi um dos mais censurados pela moral medieval. Esse era o crime do vassalo, e podem-se encontrar muitos casos nos anais medievais de punições impostas aos vassalos por seus crimes.
Por outro lado, quando a ruptura do contrato fosse feita pela parte superior, como os inúmeros casos de abusos por parte de reis, os nobres se levantariam contra o rei, fazendo uma resistência armada. E ninguém consideraria isso um crime. Era perfeitamente natural: havia um contrato, o superior violou, o inferior fez uma resistência armada para se defender.
Quando nos colocamos diante dessa perspectiva, pode parecer caótica. Corporações, municipalidades, feudos, todos fazendo resistências armadas contra o rei, pareceriam levar ao caos político. Se cada um pode fazer uma resistência armada quando imagina que tem o direito de fazê-lo, cada um é o juiz de sua própria situação; o resultado parece ser o caos.
Se transferirmos este princípio para a sociedade atual e imaginarmos que cada chefe de uma indústria ou dono de uma casa de comércio, um fazendeiro, um prefeito de uma cidade ou um governador de Estado tivesse o direito de fazer uma resistência armada, então o Estado deixaria de existir.
É verdade que essa posição legítima que governou na Idade Média está cheia de perigos, pois cada vez que um homem tem que julgar seus próprios direitos, ele pode cometer um abuso.
Isso significa que o princípio é falso? Eu penso que não. Imaginemos que alguém é injustamente condenado à morte. A polícia vai a sua casa para transportá-lo para a prisão. Ele tem o direito de fazer uma resistência armada. Isso não é absurdo, porque ele é inocente e tem direito à autodefesa.
Além disso, se o Estado faz uma lei injusta contrária ao Direito Natural, tenho o direito de resistir e desobedecer formalmente ao Estado. Tenho o direito de julgar de acordo com o Direito Natural se essa lei do Estado for injusta. Esta é a doutrina católica.
Pode-se dizer que estou indo longe demais ao imaginar que tenho o direito de julgar o Estado. Eu perguntaria: não é um abuso do Estado, que não dá direito a seus subordinados de controlar suas ações, um abuso gravíssimo?
Vejamos, por exemplo, a época da monarquia absoluta, antes da Revolução Francesa. O rei legislou; o clero, nobres e burguesia curvaram-se perante o rei. Aparentemente reinava uma ordem esplêndida, se entendermos ordem como ausência de turbulência social. Ninguém se levantou. Tudo estava calmo. Nesse sentido, poderíamos dizer que o lugar de uma cidade onde reina a maior ordem era em seu cemitério, pois ninguém se mexia ninguém fazia nenhum protesto ou levante.
Se essa inércia absoluta é o que entendemos por ordem, então o Estado absolutista estava em boa ordem. O Estado poderia fazer o que quisesse sem resistência. Deste estado de coisas surgiu a sociedade artificial que era a sociedade francesa antes da Revolução. A nobreza não tinha função definida; o clero foi degradado pela ação do rei; os plebeus estavam prestes a desaparecer. A ordem era absoluta, ninguém se revoltou, ninguém se levantou contra os abusos.
Agora, vamos comparar essa situação com a aparente turbulência da Idade Média. A agitação era muito maior, mas cada um sabia fazer respeitar os seus direitos. Não era uma ordem social extremamente tranquila e bem penteada, mas tinha o movimento próprio de um corpo vivo. Cada classe reagia quando ferida ou pisada. O resultado foi de muitas lutas concretas, uma infinidade de batalhas judiciais. Mas como todos se defendiam, todos acabavam encontrando o seu próprio lugar.
Era uma sociedade na qual quase todos podiam viver sem que seus direitos fossem espezinhados, com base no caráter contratual da Idade Média.
Continua
Rei Eduardo III fechando um contrato com o Príncipe Negro
Hoje, criamos uma associação quando vários indivíduos se reúnem, registram as atas da reunião e as inscreve no registro civil. Naquela época, uma associação era criada por ato do rei ou do senhor feudal, e por meio desse ato se constituía a pessoa jurídica.
Mas, como o princípio regente em todo o Direito Medieval era que as funções do Estado deveriam ser delegadas a particulares, assim que o rei ou senhor feudal constituísse uma universidade, ele delegaria parte de seu próprio poder político a esse organismo. Dessa forma, a universidade poderia fazer as leis para seus membros.
Assim, a maior parte da legislação trabalhista, que hoje é gerada pelo Estado, foi feita por particulares na Idade Média. As corporações ou universidades de profissionais comporiam a maioria das leis para seus próprios membros.
Temos aqui, então, outro tipo de lei, muito limitada, que regia pequenos grupos e era feita por autoridades menores. Esse foi outro tipo de fio legislativo que teceu a estrutura jurídica de uma nação medieval.
Como um indivíduo pode se defender do Estado?
Agora, consideremos outro ponto. Qual foi a defesa de um homem medieval contra o Estado?
Eu coloco a questão com um exemplo. Durante o século XVIII, em Portugal, o Marquês de Pombal, que era o equivalente a um Primeiro-Ministro do Rei D. José I, difundia as ideias do Iluminismo e estava a aniquilar a nobreza orgânica.
Com o objetivo de oprimir a nobreza, decidiu atacar a Casa do Marquês de Távora, cuja família era o elo intermediário entre a Família Real e a nobreza portuguesa. Os Távora ficavam perto da Casa dos Duques de Aveiro, que também era uma grande Casa.
O despótico Marquês de Pombal arruinou
a nobreza e o clero em Portugal
Ele os executou, tomou posse de suas propriedades e destruiu seus palácios. A Casa dos Duques de Aveiro também sofreu uma grande perseguição sob a mesma acusação. O confessor dos Távora, Pe. Gabriel Malagrida, um jesuíta, foi queimado na fogueira e simultaneamente Pombal expulsou a Ordem dos Jesuítas de Portugal e confiscou as suas propriedades.
Agora pergunto: se um de nós fosse o Marquês de Távora e soubesse que um maçom, ministro iníquo, tramava para destruir a nossa família, a nossa história, as nossas tradições e todos aqueles privilégios acumulados ao longo dos séculos na nossa Casa, e ainda, que o objetivo final daquele ministro fosse de destruir o que restava da velha nobreza de Portugal, o que deveria ele ter feito? Que tipo de ação o chefe da família Távora deveria tomar?
Ele deveria ter fugido para viver como um mendigo em um país estrangeiro? Se ele fugisse, estaria implicitamente reconhecendo como verdadeiras as acusações contra ele. Ele deveria ter resistido? Como? Ele deveria ter levado seu caso aos tribunais? Mas na ditadura de Pombal, todos os tribunais lhe obedeciam cegamente.
Aqui temos o problema que desejo enfocar. No Direito Medieval existia uma forma de resistir a uma decisão injusta de um superior, fosse ele um Rei, um senhor feudal ou um ministro poderoso, o que já não existia nos Estados absolutistas do século 18.
Toda a sociedade medieval foi construída com base em contratos privados. Era por meio de um contrato que o rei ofereceria parte de seu patrimônio a um vassalo. Esse contrato definiria os direitos do rei e do vassalo. Com base nesse contrato, o nobre vassalo dividiria ainda mais o que havia recebido e transferia parte dele para seus inferiores por meio de contratos semelhantes. O mesmo procedimento seria seguido até os degraus inferiores da nobreza.
O rei e os senhores feudais tomariam ações semelhantes com cada cidade por meio de contratos. É comum encontrar cartas da época favorecendo esta ou aquela cidade. Às vezes, eles tornavam uma cidade autônoma por meio de um contrato.
Toda a sociedade foi formada por contratos que estabeleciam os direitos e deveres de cada uma das partes envolvidas, de alto a baixo.
Direito à resistência armada
Qual foi o resultado prático desta cadeia de contratos?
O rei, os vassalos, as cidades e todas as outras unidades políticas, cada um tinha seus próprios soldados e armas. Ou seja, dispunham de meios para garantir o cumprimento dos contratos em face das transgressões da outra parte. Assim, logicamente, quando uma das partes violasse os direitos e deveres estabelecidos em contrato, a outra parte ficaria isenta de suas obrigações.
Quando a violação das obrigações fosse cometida pelo inferior, ele seria considerado criminoso, e esse crime doloso foi um dos mais censurados pela moral medieval. Esse era o crime do vassalo, e podem-se encontrar muitos casos nos anais medievais de punições impostas aos vassalos por seus crimes.
Por outro lado, quando a ruptura do contrato fosse feita pela parte superior, como os inúmeros casos de abusos por parte de reis, os nobres se levantariam contra o rei, fazendo uma resistência armada. E ninguém consideraria isso um crime. Era perfeitamente natural: havia um contrato, o superior violou, o inferior fez uma resistência armada para se defender.
Quando nos colocamos diante dessa perspectiva, pode parecer caótica. Corporações, municipalidades, feudos, todos fazendo resistências armadas contra o rei, pareceriam levar ao caos político. Se cada um pode fazer uma resistência armada quando imagina que tem o direito de fazê-lo, cada um é o juiz de sua própria situação; o resultado parece ser o caos.
Se transferirmos este princípio para a sociedade atual e imaginarmos que cada chefe de uma indústria ou dono de uma casa de comércio, um fazendeiro, um prefeito de uma cidade ou um governador de Estado tivesse o direito de fazer uma resistência armada, então o Estado deixaria de existir.
Disputas jurídicas e armadas foram as consequências saudáveis do direito de legítima defesa
Isso significa que o princípio é falso? Eu penso que não. Imaginemos que alguém é injustamente condenado à morte. A polícia vai a sua casa para transportá-lo para a prisão. Ele tem o direito de fazer uma resistência armada. Isso não é absurdo, porque ele é inocente e tem direito à autodefesa.
Além disso, se o Estado faz uma lei injusta contrária ao Direito Natural, tenho o direito de resistir e desobedecer formalmente ao Estado. Tenho o direito de julgar de acordo com o Direito Natural se essa lei do Estado for injusta. Esta é a doutrina católica.
Pode-se dizer que estou indo longe demais ao imaginar que tenho o direito de julgar o Estado. Eu perguntaria: não é um abuso do Estado, que não dá direito a seus subordinados de controlar suas ações, um abuso gravíssimo?
Vejamos, por exemplo, a época da monarquia absoluta, antes da Revolução Francesa. O rei legislou; o clero, nobres e burguesia curvaram-se perante o rei. Aparentemente reinava uma ordem esplêndida, se entendermos ordem como ausência de turbulência social. Ninguém se levantou. Tudo estava calmo. Nesse sentido, poderíamos dizer que o lugar de uma cidade onde reina a maior ordem era em seu cemitério, pois ninguém se mexia ninguém fazia nenhum protesto ou levante.
Se essa inércia absoluta é o que entendemos por ordem, então o Estado absolutista estava em boa ordem. O Estado poderia fazer o que quisesse sem resistência. Deste estado de coisas surgiu a sociedade artificial que era a sociedade francesa antes da Revolução. A nobreza não tinha função definida; o clero foi degradado pela ação do rei; os plebeus estavam prestes a desaparecer. A ordem era absoluta, ninguém se revoltou, ninguém se levantou contra os abusos.
Agora, vamos comparar essa situação com a aparente turbulência da Idade Média. A agitação era muito maior, mas cada um sabia fazer respeitar os seus direitos. Não era uma ordem social extremamente tranquila e bem penteada, mas tinha o movimento próprio de um corpo vivo. Cada classe reagia quando ferida ou pisada. O resultado foi de muitas lutas concretas, uma infinidade de batalhas judiciais. Mas como todos se defendiam, todos acabavam encontrando o seu próprio lugar.
Era uma sociedade na qual quase todos podiam viver sem que seus direitos fossem espezinhados, com base no caráter contratual da Idade Média.
Continua
- Em Português e outras línguas Latinas, pessoa jurídica é qualquer conjunto de pessoas que se associam para perseguir um determinado fim e são reconhecidas como tal pela autoridade civil. Assim, qualquer entidade social é uma pessoa jurídica com seus direitos e deveres. O indivíduo simples é designado como pessoa física, com seus direitos e deveres. A lei considera cada uma dessas categorias separadamente: pessoas físicas e jurídicas.
Postado em 20 de setembro de 2021
Sociedade Orgânica foi um tema caro ao falecido Prof. Plinio Corrêa de Oliveira. Ele abordou este tema em inúmeras ocasiões durante a sua vida - às vezes em palestras para a formação de seus discípulos, às vezes em reuniões com amigos que se reuniram para estudar os aspectos sociais e história da cristandade, às vezes apenas de passagem.
Prof. Plinio
Atila S. Guimarães selecionou trechos dessas palestras e conversas a partir das transcrições das fitas e de suas anotações pessoais. Ele traduziu e adaptou-os em artigos para o site da TIA. Nestes textos, a fidelidade às ideias e palavras originais é mantida o máximo possível.
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