Sociedade Orgânica
Lei Consuetudinária - II
As Invasões Bárbaras
Moldaram uma Nova Situação Jurídica
Durante os séculos 9 e 10, a Europa foi literalmente devastada por invasões bárbaras vindas de todas as direções. Houve invasões de húngaros, os descendentes remotos dos hunos, que varreram a Alemanha com seus pequenos e rápidos cavalos, depois cruzaram a Áustria e destruíram o norte da Itália. De lá, eles passaram pelas montanhas da Suíça até atingirem o coração da França e a região de Champagne.
Em seguida, vieram as invasões dos vikings, que se originavam da Escandinávia. Eles penetraram na Europa por meio de seus rios, queimando, saqueando e causando devastação. Eles eram tão habilidosos como marinheiros que cruzaram toda a Europa e acabaram invadindo Constantinopla. Isso demonstra bem o ímpeto e a ferocidade daquele povo.
Outro grupo de nômades guerreiros equestres de extração altaica que invadiu a Europa Central e Oriental foram os ávaros, povo que mais tarde desapareceu. Finalmente, temos os sarracenos que entraram na França pelos Pirineus e cruzaram toda a Itália.
Essas invasões – hostis à Europa e umas às outras – que vieram de todos os lados, literalmente liquidaram a Europa. Quando falamos em invasão, normalmente imaginamos uma coluna de assalto que entra em uma área com uma agenda calculada. Só o que está no caminho dessa coluna de pilhagem é devastado, mas não foi isso que aconteceu com aquelas hordas.
Eles eram bárbaros, não tinham mapas; vagavam sem o objetivo de conquistar um país, mas visavam apenas os saques. Não tinham nenhum objetivo definido como de permanecer e morar nas terras que saqueavam, nem tinham a intenção clara de retornar aos seus locais de origem. Eles só queriam pilhar e viver da terra até que estivessem prontos para seguir em frente, ou ser expulsos por outro grupo rival.
Os leitores podem imaginar tais hordas movendo-se aqui e ali pela Europa, indo e voltando desta maneira. Uma cidade pode ser saqueada por húngaros e, pouco depois, tornar-se presa de sarracenos ou de vikings. Ninguém sabia ao certo quem viria para devastar a terra, por que viria ou quando partiria. Era impossível planejar qualquer coisa, simplesmente porque os invasores não tinham plano algum.
Coloquemo-nos na posição de um rei. Suponhamos que o rei da França estivesse em Paris cercado de bárbaros. Ele não possuía telégrafo, telefone ou rádio. Ele só tomava conhecimento do que acontecia por meio de mensageiros que chegavam a cavalo para relatar a ele o que havia sucedido neste ou naquele lugar.
Dois fatores colocavam em risco essa fonte de informação: primeiro, os mensageiros poderiam ser capturados pelos inimigos e impedidos de entregar suas notícias ao rei; segundo, os nobres pararam de enviar notícias porque o rei não poderia ajudá-los. A impossibilidade de ele oferecer ajuda era compreensível. Se a invasão se concentrasse em um único ponto, ele poderia reunir forças e enviá-las para lá. Mas o fato de que as hordas estavam entrando em todos os lugares tornava impossível planejar qualquer contra-ataque razoável.
Portanto, a única resistência tinha de ser local: fortalezas foram construídas para enfrentar os inimigos e resistir aos seus cercos. Assim, a França e a Europa começaram a se encher de castelos para proteger as famílias dos grandes proprietários de terras, seus servos, suas provisões e seu gado.
Agora, imagine esta situação continuando por um período de mais ou menos dois séculos. Imagine se nosso país tivesse sido continuamente devastado por bárbaros nos últimos 200 anos. Seria um fenômeno que marcaria profundamente a fisionomia do país. Como isso marcou a Europa?
Em toda parte, os proprietários de terras começaram a exercer sua autoridade natural para manter a ordem e a vida. A mesma coisa acontece, por exemplo, quando um navio sai do curso em uma tempestade sem esperança de retornar. Seus passageiros formam um pequeno grupo social com vida interna própria, um minúsculo segmento da humanidade, e o capitão acaba se tornando uma espécie de rei. Ele é o único que sabe como dirigir o navio. As outras formas de autoridade recaem naturalmente sobre ele, e ele é quem assume o comando. É assim, analogicamente, como o feudalismo nasceu na Europa.
Eu sorrio quando ouço falsos historiadores fazerem este tipo de discurso: “Na idade das trevas dos tempos medievais, os decadentes reis carolíngios eram incapazes de segurar o cetro de Carlos Magno em suas mãos trêmulas, nem podiam suas mentes rudes discernir o pensamento do grande fundador do Império para preservar a sua unidade.”
Gostaria de ver o que um desses críticos faria com o cetro de Carlos Magno se fosse cercado por essas hordas devastadoras na capital do Reino. Ele provavelmente fugiria, deixando o cetro na estrada ou vendendo-o para o primeiro mercador que surgisse. Quanto às exigências de unidade, duvido que ele sequer pensasse nelas.
Em outras palavras, era simplesmente assim que as coisas funcionavam, o que aquele jogo brutal de circunstâncias impunha.
Bom senso versus sociologia
Aqueles homens da Idade Média tinham uma vantagem enorme sobre nós. Eles não sabiam sociologia. Não tinham, portanto, o vício de registrar as estatísticas, estudá-las e resolver problemas sociais que não eram seus. Em nossa época, isso se tornou uma verdadeira mania, uma espécie de psicose na sociedade contemporânea. Temos multidões desses caçadores de problemas que buscam estatísticas para provar, primeiro, que o problema existe e, só então, buscar soluções.
Os homens medievais eram diferentes: eles não faziam teorias acadêmicas sobre a sociedade. Só tiveram tempo de resolver seus problemas com o bom senso de quem vive seu dia a dia e nada mais. Então, entre as invasões, eles semeariam e colheriam porque precisavam do trigo para não morrer de fome; tiveram de cavar um novo poço porque no último cerco o anterior foi destruído ou considerado insuficiente. Eles precisavam enviar ajuda a um aliado que estava sendo atacado ou então todos seriam mortos e sua posição enfraquecida. Em suma, eles não tinham tempo para poesia, sociologia e elaboração de leis e regulamentos.
No entanto, ao longo desses 200 anos essas pessoas continuaram a viver, comprar, vender, fazer empréstimos e seguir toda uma vida jurídica. A realidade jurídica sofreu o impacto da nova situação.
Esse panorama alterado é o que mudou decisivamente o sistema jurídico da lei escrita para a lei consuetudinária.
Continua
A invasão Húngara ou Magiar devastou grande parte da Europa
Outro grupo de nômades guerreiros equestres de extração altaica que invadiu a Europa Central e Oriental foram os ávaros, povo que mais tarde desapareceu. Finalmente, temos os sarracenos que entraram na França pelos Pirineus e cruzaram toda a Itália.
Essas invasões – hostis à Europa e umas às outras – que vieram de todos os lados, literalmente liquidaram a Europa. Quando falamos em invasão, normalmente imaginamos uma coluna de assalto que entra em uma área com uma agenda calculada. Só o que está no caminho dessa coluna de pilhagem é devastado, mas não foi isso que aconteceu com aquelas hordas.
Entrando pelos rios, os vikings constituíam um perigo incerto e terrível
Os leitores podem imaginar tais hordas movendo-se aqui e ali pela Europa, indo e voltando desta maneira. Uma cidade pode ser saqueada por húngaros e, pouco depois, tornar-se presa de sarracenos ou de vikings. Ninguém sabia ao certo quem viria para devastar a terra, por que viria ou quando partiria. Era impossível planejar qualquer coisa, simplesmente porque os invasores não tinham plano algum.
Coloquemo-nos na posição de um rei. Suponhamos que o rei da França estivesse em Paris cercado de bárbaros. Ele não possuía telégrafo, telefone ou rádio. Ele só tomava conhecimento do que acontecia por meio de mensageiros que chegavam a cavalo para relatar a ele o que havia sucedido neste ou naquele lugar.
Dois fatores colocavam em risco essa fonte de informação: primeiro, os mensageiros poderiam ser capturados pelos inimigos e impedidos de entregar suas notícias ao rei; segundo, os nobres pararam de enviar notícias porque o rei não poderia ajudá-los. A impossibilidade de ele oferecer ajuda era compreensível. Se a invasão se concentrasse em um único ponto, ele poderia reunir forças e enviá-las para lá. Mas o fato de que as hordas estavam entrando em todos os lugares tornava impossível planejar qualquer contra-ataque razoável.
Portanto, a única resistência tinha de ser local: fortalezas foram construídas para enfrentar os inimigos e resistir aos seus cercos. Assim, a França e a Europa começaram a se encher de castelos para proteger as famílias dos grandes proprietários de terras, seus servos, suas provisões e seu gado.
Agora, imagine esta situação continuando por um período de mais ou menos dois séculos. Imagine se nosso país tivesse sido continuamente devastado por bárbaros nos últimos 200 anos. Seria um fenômeno que marcaria profundamente a fisionomia do país. Como isso marcou a Europa?
Em toda parte, os proprietários de terras começaram a exercer sua autoridade natural para manter a ordem e a vida. A mesma coisa acontece, por exemplo, quando um navio sai do curso em uma tempestade sem esperança de retornar. Seus passageiros formam um pequeno grupo social com vida interna própria, um minúsculo segmento da humanidade, e o capitão acaba se tornando uma espécie de rei. Ele é o único que sabe como dirigir o navio. As outras formas de autoridade recaem naturalmente sobre ele, e ele é quem assume o comando. É assim, analogicamente, como o feudalismo nasceu na Europa.
Eu sorrio quando ouço falsos historiadores fazerem este tipo de discurso: “Na idade das trevas dos tempos medievais, os decadentes reis carolíngios eram incapazes de segurar o cetro de Carlos Magno em suas mãos trêmulas, nem podiam suas mentes rudes discernir o pensamento do grande fundador do Império para preservar a sua unidade.”
Gostaria de ver o que um desses críticos faria com o cetro de Carlos Magno se fosse cercado por essas hordas devastadoras na capital do Reino. Ele provavelmente fugiria, deixando o cetro na estrada ou vendendo-o para o primeiro mercador que surgisse. Quanto às exigências de unidade, duvido que ele sequer pensasse nelas.
Em outras palavras, era simplesmente assim que as coisas funcionavam, o que aquele jogo brutal de circunstâncias impunha.
Bom senso versus sociologia
Aqueles homens da Idade Média tinham uma vantagem enorme sobre nós. Eles não sabiam sociologia. Não tinham, portanto, o vício de registrar as estatísticas, estudá-las e resolver problemas sociais que não eram seus. Em nossa época, isso se tornou uma verdadeira mania, uma espécie de psicose na sociedade contemporânea. Temos multidões desses caçadores de problemas que buscam estatísticas para provar, primeiro, que o problema existe e, só então, buscar soluções.
A construção dos castelos representou uma mudança completa na ordem social e jurídica anterior
No entanto, ao longo desses 200 anos essas pessoas continuaram a viver, comprar, vender, fazer empréstimos e seguir toda uma vida jurídica. A realidade jurídica sofreu o impacto da nova situação.
Esse panorama alterado é o que mudou decisivamente o sistema jurídico da lei escrita para a lei consuetudinária.
Continua
Postado em 1 de novembro de 2021
Sociedade Orgânica foi um tema caro ao falecido Prof. Plinio Corrêa de Oliveira. Ele abordou este tema em inúmeras ocasiões durante a sua vida - às vezes em palestras para a formação de seus discípulos, às vezes em reuniões com amigos que se reuniram para estudar os aspectos sociais e história da cristandade, às vezes apenas de passagem.
Prof. Plinio
Atila S. Guimarães selecionou trechos dessas palestras e conversas a partir das transcrições das fitas e de suas anotações pessoais. Ele traduziu e adaptou-os em artigos para o site da TIA. Nestes textos, a fidelidade às ideias e palavras originais é mantida o máximo possível.
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