Qual deve ser a proporção entre o dinheiro que circula em um país e o excedente reservado e utilizado em investimentos e especulação?
O dinheiro é uma maneira prática de permitir trocas de mercadorias. Uma pessoa tem um cavalo para vender; outro tem um certo número de sacas de milho. Em vez de ter que arrastar seus sacos de milho para trocar pelo cavalo, o fazendeiro vende seu milho ao melhor comprador; então, com o dinheiro que recebe, pode comprar o cavalo de que precisa onde quiser.
O ouro foi acordado como meio de lastro de moeda |
Em princípio, dinheiro pode ser qualquer coisa que seja acordada para permitir tais trocas: uma moeda, um papel emitido por uma autoridade confiável, um pequeno pedaço de madeira gravado com o selo de um rei ou imperador, um dente de animal ou qualquer outro padrão que uma sociedade aceita como meio de troca.
O 'valor intrínseco' do ouro
Sou um pouco cético quanto à afirmação de que uma moeda de ouro tem um valor intrínseco devido à sua raridade e durabilidade. Por muito tempo se sustentou que o ouro e a prata ¬-- que também é rara, embora menos que o ouro -- deveriam ser a moeda de todos os países, ou pelo menos a moeda de troca. Todo mundo sabe que uma reserva de ouro ou prata é uma forma prática de preservar o tesouro de um país ou pessoa.
Parece-me que essa pressuposição – que o ouro tem valor intrínseco – funcionou bem por muito tempo porque o Velho Mundo – Europa e Ásia – havia explorado quase todas as suas minas conhecidas. No entanto, com o descobrimento das Américas, a situação mudou. No século 16, a quantidade de ouro embarcada das Américas para a Europa foi tão grande que quebrou os padrões estabelecidos.
Sem ser especialista, diria que nesta primeira fase da descoberta, o ouro das Américas fez da Espanha uma potência e, em certa medida, também Portugal. Na segunda fase, imagino que aos poucos esse ouro tenha caído nas mãos daqueles que controlavam as finanças internacionais, que estavam apenas sendo estruturadas naquela época. Assim, o ouro manteve seu valor, acredito, não por sua raridade, mas graças a uma contenção artificial.
Ouro das Américas encheu os cofres de Espanha e Portugal |
Por um longo período, o ouro das Américas inundou a Europa. Li sobre um fazendeiro de Minas Gerais – quando o Brasil ainda era colônia – que queria mostrar ao Monarca português o formato de banana, uma fruta que não tinha na Europa.
No entanto, a banana não duraria o suficiente na longa viagem por mar. Então, o fazendeiro ordenou que um cacho inteiro de bananas fosse moldado em ouro puro [um cacho de bananas pode ter 80 a 90 centímetros de altura e um cacho de ouro poderia facilmente pesar 100 Kg] e o trouxe pessoalmente ao Rei.
Assim, apenas para satisfazer a curiosidade do Rei, ele ofereceu este esplêndido presente. É um exemplo que mostra quanto ouro estava sendo extraído aqui e enviado para a Europa. Também mostra que naquela época o ouro havia perdido de muitas maneiras o seu “valor intrínseco.”
No século 19, a Europa colonizou a África e, novamente, uma nova onda de ouro teria inundado a Europa se a maior parte do mercado de ouro já não estivesse controlada. Talvez uma exceção a essa regra tenha sido a Inglaterra, que se beneficiou do ouro africano para expandir o Império britânico enquanto promovia a revolução industrial.
Sabemos que no Brasil – onde por uma lei socialista as reservas minerais subterrâneas pertencem ao Estado – há muitas minas de ouro inexploradas. Se fossem mineradas, reduziriam o preço do ouro em todo o mundo. A África do Sul também tem minas de ouro muito ricas que – se extraídas – podem produzir um efeito semelhante.
Nas colônias, as novas igrejas eram ornamentadas com ouro, como a Igreja de São Francisco na cidade de Salvador, Bahia, Brasil |
Assim, mesmo um país cuja moeda seja lastreada em ouro e que se considera estável e seguro por isso, deve ter em mente que o ouro está sendo controlado artificialmente hoje.
Objetivamente falando, não é sua raridade que sustenta o valor do ouro. Sabemos que existem enormes reservas de ouro que já foram exploradas e são mantidas fora de circulação para manter seu preço, assim como existem muitas minas de ouro propositalmente inexploradas.
Quem estabelece a quantidade de ouro que deve circular e fixa seu preço? Acredito que são coisas estabelecidas por um acordo entre os chefes das finanças internacionais.
Proporção entre a moeda circulante e os investimentos
Qual deve ser a proporção entre o dinheiro necessário para circular para as trocas adequadas em uma sociedade orgânica e o excedente de moeda que é economizado ou investido nos bancos? Esse excedente é com que o capitalismo 'selvagem' ou ‘bárbaro’ começa seu processo de especulação.
Não é difícil imaginar que o excedente de ouro vindo dos séculos 16 e 19 acabou a serviço daqueles que controlavam esse capitalismo selvagem. Então, qual deve ser a proporção entre o dinheiro circulante e o excedente de moeda economizado? Deve ser usado em especulação ou outra coisa?
Além disso, o que a Igreja deve dizer sobre a regulamentação da especulação excessiva? Como um Estado católico deve agir diante desse problema? Não tenho respostas precisas para essas perguntas. Deixe-me dar um exemplo, no entanto, que pode ajudar na busca de uma solução.
El Cid lutou em guerras pelo bem comum da Espanha. Seus métodos para financiá-los eram justificados? |
O poema épico espanhol A Canção de Meu Cid, conta-nos como El Cid teve de sustentar todos aqueles que o seguiam para lutar por uma causa que servia ao bem comum da Espanha. Ele precisava de dinheiro, então procurou em Burgos dois agiotas judeus que forneceram a quantia necessária.
Como promessa, El Cid deu a eles dois baús pesados e trancados, supostamente contendo seu tesouro, mas na verdade cheios de areia e pedras. Uma condição que El Cid estabeleceu foi que os judeus não pudessem abrir os baús por um ano, ou perderiam o pagamento do empréstimo. Se nenhum pagamento viesse depois de um ano, eles poderiam abrir os baús e tirar deles o que haviam emprestado. Não me lembro de ter lido no poema que ele tenha feito o pagamento àqueles credores judeus.
É uma história curiosa com várias implicações morais que não vou tratar aqui. Vou me concentrar apenas em uma questão. Era justo que El Cid pegasse o dinheiro daqueles especuladores que jogavam com ele para seu benefício pessoal e o utilizasse para o bem comum da Espanha? A resposta a esta pergunta pode lançar luz sobre o nosso problema hoje.
Quando o bem público pode exigir que o especulador individual entregue seu dinheiro ao Estado? Acredito que em tempos de crise, em situações extraordinárias, o Estado pode pedir isso aos indivíduos. Mas o que exatamente é uma situação extraordinária? Seria religiosa, política ou social? Quem tem autoridade para estabelecer os critérios para tais situações? Eu sei que uma guerra externa, de acordo com o direito natural, é uma situação política extraordinária e um Estado pode pedir aos seus cidadãos que deem o seu excedente e até o que for necessário para salvar o país.
Mas também pode pedir o mesmo em situações comuns? Quando um país vive em paz, o especulador tem o direito de usar indefinidamente seu dinheiro em benefício próprio? Quais são os limites? Precisamos de mais estudos sobre o tema.
Como um Estado Católico deve usar sua riqueza excedente
O que um Estado católico deve fazer com sua moeda excedente? O que Espanha e Portugal fizeram com aquele ouro extra que veio das Américas? De muitas maneiras, Espanha e Portugal o utilizaram para expandir e defender a Fé católica. Ambos os países acabavam de fechar o longo parêntese com a Reconquista da Península Ibérica aos mouros que tinha havia começado em 722.
Espanha e Portugal usaram suas novas riquezas para difundir e defender a Fé Católica |
Passaram-se mais de sete séculos desde que D. Pelayo reuniu os seus heróis em Covadonga até 1492, quando Fernando e Isabel expulsaram os últimos mouros de Granada. Durante essa luta constante contra os invasores muçulmanos, o espírito de cavalaria foi preservado nesses dois países católicos. Muito depois de o resto da Europa ter perdido a mentalidade medieval, Espanha e Portugal a mantiveram imaculada e pura.
Esta reserva de espírito medieval foi a base não só da era dos descobrimentos, mas também da Contra-Reforma. Quando analisamos o espírito de Santo Inácio de Loyola, vemos que ele era um cavaleiro medieval, e com esse espírito fundou a Companhia de Jesus. Todo aquele extraordinário florescimento de santos e ordens religiosas na Espanha do século 16 foi, a meu ver, fruto da mentalidade medieval que se conservou na Península Ibérica durante séculos, tendo encontrado então uma nova expressão.
Assim, a Espanha gastou muito desse ouro extra promovendo a expansão da Fé católica e da Cristandade na América espanhola, enquanto Portugal fazia o mesmo no Brasil, partes da África e Índia. O dinheiro também foi utilizado nas guerras religiosas e nas constantes lutas contra o protestantismo na Europa liderado pela Espanha, e para a defesa da Cristandade no Mediterrâneo. Não devemos esquecer que foi Filipe II quem custeou as principais despesas da Batalha de Lepanto, que salvou a Europa de outra invasão dos muçulmanos.
Vê-se, portanto, que esse ouro extra foi em muitos aspectos providencial para que Espanha e Portugal trouxessem a Fé católica e a civilização cristã para o Novo Mundo.
Esta é, então, uma boa maneira de um país utilizar sua moeda excedente para promover a Causa católica. Ao contrário, não é difícil imaginar que outros países como Inglaterra e Prússia tenham usado seu dinheiro extra para promover a Revolução e atacar a Igreja Católica. Também é fácil imaginar que as pessoas que controlam as finanças internacionais de hoje promovam abertamente a Revolução.
Como Portugal e Espanha perderam o seu espírito heroico?
Por que Espanha e Portugal não continuaram sua luta por esse nobre ideal? Camões, o grande poeta português, que em Os Lusíadas cantou a glória de Portugal daquela época, atribui a perda do espírito de cavalaria a uma mudança de mentalidade. O heroico Portugal de outrora deixou de lado o seu nobre ideal, afirma Camões, por causa da “ganância e desejo de riqueza,” que produziu em todo o povo “uma tristeza austera, tediosa e vil.”
Portugal e Espanha desistiram de lutar pelo ideal católico por causa de uma mudança de mentalidade. Uma mentalidade está focada na glória de Deus e na virtude; a outra no amor ao ouro.
Postado em 14 de fevereiro de 2022
| Prof. Plinio |
Sociedade Orgânica foi um tema caro ao falecido Prof. Plinio Corrêa de Oliveira. Ele abordou este tema em inúmeras ocasiões durante a sua vida - às vezes em palestras para a formação de seus discípulos, às vezes em reuniões com amigos que se reuniram para estudar os aspectos sociais e história da cristandade, às vezes apenas de passagem.
Atila S. Guimarães selecionou trechos dessas palestras e conversas a partir das transcrições das fitas e de suas anotações pessoais. Ele traduziu e adaptou-os em artigos para o site da TIA. Nestes textos, a fidelidade às idéias e palavras originais é mantida o máximo possível.
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