Nesse processo de interações de dinamismos que discutimos em artigos recentes (aqui,
aqui e aqui), há um momento em que Deus toca um povo com a ponta do dedo e este ganha vitalidade, produzindo algo memorável.
Qual é este ponto para o qual tudo se orienta desde o momento em que Deus toca aquele povo em particular?
Catedral de Chartres, expressão do Plano A que Deus tem para a França |
Não estou supondo que Deus atue sem considerar o contexto da situação, como quem entra abruptamente em cena e dá uma direção inteiramente nova aos acontecimentos. Em vez disso, proponho que Deus normalmente age por meio de causas secundárias. E essas segundas causas tipicamente têm seus próprios dinamismos, que também entram no plano divino. Ele os criou, e eles concordam em fazer o que Deus deseja que façam.
Outra coisa a acrescentar é que o homem tem uma liberdade de ação admirável e terrível. Um fator importante nessa equação é sua asseitas, (1) ou seja, a principal característica de seu ser que ele precisa cumprir. Esta asseitas, ou vocação, é parte de um conjunto do plano de Deus, e o homem pode estragá-lo. Quando o homem não realiza o que Deus deseja em Seu Plano A, o homem pode arrastar a História para o Plano B. Às vezes, Deus permite que o homem faça isso; em outras ocasiões, Ele aniquila aquele homem, remedia o mal feito e continua com Seu plano desejado.
Em sua primeira fase, cada povo é uma espécie de esboço do que deveria ser; tem um potencial, como o de uma criança. A criança, como embrião, tem a personalidade que o homem terá mais tarde. Sua formação e circunstâncias externas atuarão sobre esse embrião. O próprio homem agirá sobre sua própria pessoa de maneiras diferentes.
Existe um Plano A para aquele homem, que Deus lhe revela em determinado momento. Se não o seguir, será sempre um indivíduo deficiente, frustrado, como alguém cujo pé se deformou num acidente e não consegue andar bem. Ele não está seguindo o plano ideal para o qual Deus o criou e não progride normalmente. Deus pode ter misericórdia dele e ajudá-lo a andar, mas isso já é outro assunto.
O dinamismo natural mãe-filho desempenhou um papel na conversão de Santo Agostinho |
Deus pode intervir na vida de um povo ou de um homem de maneira milagrosa, como no caso da conversão de São Paulo. Mas geralmente Ele age por segundas causas, como no caso da conversão de Santo Agostinho. Ou seja, Deus aproveitou a relação mãe-filho com todo o seu dinamismo especial - vivido por Santa Mônica como santa e vivido por Santo Agostinho como pecador - para produzir a vitória final do santo sobre o pecador.
Em cada pessoa que começa a se desenvolver, existe um plano divino. Deve ser dito que não é necessariamente um grande plano. Nem todo povo é chamado para ser o que o Egito antigo era na época de Ramsés II. Pode ser um plano modesto. Mas se esse povo lhe for fiel, todo o dinamismo das várias famílias e grupos se desenvolverá de maneira excelente e produzirá algo original, ou seja, a explicitação da promessa inicial de Deus.
A cultura e as instituições de um povo seguem esse desenvolvimento. A marcha de um povo na História é marcada por esse dinamismo interativo. Quando um povo faz frutificar tudo o que está implícito na sua asseitas, original, cumpre o seu papel na História.
A marcha de um povo da fase embrionária à plenitude pode ser descrita como o processo de explicitar a sua mensagem particular para si, para a História e para Deus. Quando um povo segue o caminho dessa auto-explicitação, todas as suas partes alcançam uma harmonia que aperfeiçoa o processo das interações dos dinamismos à medida que caminha em direção à sua auto-realização.
Um povo é como uma orquestra onde cada
músico tem sua parte a desempenhar |
Este processo será cada vez mais perfeito na medida em que o povo siga seu processo de auto-explicitação e na medida em que os aspectos mais profundos da personalidade de cada um encontrem expressão adequada.
Um povo pode ser comparado a uma orquestra onde cada pessoa, inclusive o homem que golpeia o pequeno triângulo com a haste de aço, desempenha seu papel para que a orquestra alcance uma harmonia excelente. O homem que bate no pequeno triângulo não deve desanimar, porque nasceu para desempenhar apenas aquele papel modesto, pois em determinado momento na sinfonia daquele povo, os tons que ele faz dão ao conjunto um toque tão delicado e repleto de uma brilhante alegria que contribui para a quintessência que o povo foi chamado a expressar. Ele se torna um virtuoso porque ele toca seu instrumento no momento certo.
Navegando lentamente por um dos principais canais de Bruges-la-Morte, na Bélgica, um turista encontra uma curva que revela uma casa característica da cidade. Suponha que uma mulher que more naquela casa, uma simples dona da casa que não tem ideia de que pode estar desempenhando um papel histórico, tenha pendurado uma cortina de renda charmosa em uma janela.
O conjunto de Bruge pode ser representado em um único detalhe em uma casa |
Quando esse turista vê a cortina, num piscar de olhos entende tudo sobre Bruges-la-Morte e o que ela representa. É essa cortina que explicita toda a fisionomia da cidade em sua mente. O que desencadeou esse processo foi aquela pequena cortina. Assim, a senhora que arrumou sua cortina em sua casa, como o homem que executou o pequeno triângulo na orquestra, desempenhou um papel na sinfonia que Deus quer que aquela cidade e aquele povo tocassem.
O que é extraordinário na Europa é que, em certo período, quase todos os povos da Cristandade estavam atingindo sua plenitude de si. Por estarem seguindo algo próximo ao seu Plano A querido de Deus, até mesmo algumas pequenas nações se tornaram magníficas obras de arte de Deus. A Holanda é uma delas; a Bélgica é outra.
Se este último não tivesse nada além da Grande Place em Bruxelas e os esplêndidos molhos de um restaurante onde jantei com uns amigos (lamento mas o nome dele me foge à memória neste momento), dir-se-ia que a Bélgica cumpriu o seu papel. Pode não ter realizado seu Plano A em tudo, mas nestes pontos correspondeu ao primeiro plano. Por isso ocupa um lugar de honra entre todas as nações que têm honra no mundo. Isso é o que constitui a honra de uma nação: ter realizado algo do plano inicial que Deus tinha para ela.
Daí vem o princípio de que as interações dos dinamismos de um povo serão vigorosas e rumo à perfeição na medida em que explicite a mensagem original que recebeu de Deus. Cada povo deve desempenhar seu próprio papel na sinfonia universal que dá glória a Deus. Quando um povo expressa essa mensagem, ela atinge um ápice, uma plenitude magnífica.
O povo Belga é explicado na Grand Place de Bruxelas |
Todos os dinamismos fluem juntos em uma harmonia comunicativa, de forma que na mesma época histórica o homem que é calígrafo atinge o apogeu de sua arte ao mesmo tempo que o maior poeta daquele povo precisa de um calígrafo para escrever seus poemas. Ao mesmo tempo, a arquitetura característica daquele povo está alcançando sua plena expressão. A vocação de cada um interage com as vocações dos outros de tal maneira que o conjunto constitui um unum, uma unidade naquela variedade, que se torna a característica principal e o encanto daquele povo.
Quando isso acontece nas pessoas, as asseitas de cada homem tende a florescer por meio de um rico dinamismo que se dirige para fora. Esta é a hora de Deus para um povo. É como o verão para as plantas, quando a estação de crescimento está no auge. Não há fatalismo nessas ações dos povos, assim como não há fatalismo em dizer que o verão leva as plantas ao auge. Isso não exclui o papel do jardineiro, que semeia, cultiva e colhe as plantas. O papel do jardineiro continua o mesmo. Ele tem que aproveitar o verão, mas não é ele que faz as estações mudarem.
Quando tudo atinge sua perfeição ao mesmo tempo pelas mesmas pessoas, o resultado é uma sincronia magnífica revelando a unidade daquele povo, que é melhor do que cada uma de suas partes. Este é o apogeu de um povo. Cada elemento deu tudo, e o conjunto foi orientado para cumprir o plano pré-estabelecido por Deus no governo da História.
É possível mostrar esse ideal a um povo?
É, e isso pode ter o efeito de uma ressurreição para um povo que abandonou sua vocação, sua asseitas. Mas para mostrar o ideal, é preciso primeiro pelo menos ter um vislumbre do que é esse projeto inicial de Deus para aquele povo na História. Esta é uma graça que podemos pedir a Nossa Senhora de joelhos.
Um povo pode recusar seu Plano A e se desenvolver de maneira errada. Em algum momento, porém, a hora da misericórdia pode soar para ele e Deus pode tentar reconstruí-lo fazendo uma nova estrela brilhar em seu horizonte, convidando-o não apenas a retornar ao Plano A, mas a cumprir o Plano A + A: um canticum novum (uma nova canção) a ser cantada para a glória de Deus por toda a eternidade.
Isso aconteceu com Carlos Magno. Nele o antigo ideal do Império Romano continuou. Depois que o Papa o coroou Imperador, ele considerou seu Império uma continuação do antigo ideal Romano de Império. Mas ele também criou o mundo Germânico com ele, pois o novo César era um Alemão característico. Em Carlos Magno todos esses dinamismos que estamos estudando tiveram uma interação inebriante, e disso nasceu a Europa. Foi ele quem cantou o canticum novum, ele assumiu com amor toda a herança do passado e apresentou-a de uma nova maneira.
1. Asseitas ou aseitas na linguagem Escolástica é a característica do ser que existe per se (a se) e não por outro (ad alio); Em seu sentido próprio, é o caráter do ser que é per se, id est, cuja existência não vem de outro; é incriado. É um atributo próprio de Deus. Em seu sentido ampliado, é o caráter do que é per se, do que tem existência própria (Paul Fouquié, Dictionnaire de la Langue Philosophique, Paris: PUF, 1962). No texto asseitas é usado analogicamente como a principal característica ontológica que Deus deu ao homem e que ele deve desenvolver para cumprir perfeitamente a si mesmo e à missão divina que Deus lhe deu.
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Postado em 21 de dezembro de 2020
  | | Prof. Plinio |
Sociedade Orgânica foi um tema caro ao falecido Prof. Plinio Corrêa de Oliveira. Ele abordou este tema em inúmeras ocasiões durante a sua vida - às vezes em palestras para a formação de seus discípulos, às vezes em reuniões com amigos que se reuniram para estudar os aspectos sociais e história da cristandade, às vezes apenas de passagem.
Atila S. Guimarães selecionou trechos dessas palestras e conversas a partir das transcrições das fitas e de suas anotações pessoais. Ele traduziu e adaptou-os em artigos para o site da TIA. Nestes textos, a fidelidade às idéias e palavras originais é mantida o máximo possível.
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